Grito Número Cento e Quarenta e Nove:

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

VOLVER

A neve me faz adormecer na trincheira. 
Eis que chega a solidão no ataque.
Munida de baioneta, tabaco e conhaque.
Espeta meu peito e diz que não haverá esperança.

Sem clemência.
Sem tempo ou paciência.
Vou defianhando.
E quando quase agonizando,
E nos meus erros pensando, 
Chega aos ouvidos uma doce voz
Que diz que não preciso mais estar só.

E a voz me revigora.
E meu peito que até então chora
Me mostra que depois do negro agora
Pode vir manhã clara

Mas volta a noite para minha trincheira
E mais forte e derradeira
Volta camuflada a solidão
Me toma a mão e me leva mais uma vez ao trapo.
E à baioneta, ao conhaque, tabaco. 



Grito Número Cento e Quarenta e Oito:

MESSIAS TORTOS

Filosofia vã, crença barata em deus morto
Quero crer, mas não vejo fé, nem mesmo em mim
Minha face carrega o resto do corpo
Em um barco ou em um copo com fósforo ou gim

Ser o poeta da carne, o escritor maldito
Por isso fugir, por isso aflito
Por isso superar
O limite entre céu e mar

(O horizonte está torto)

A maleta, o chapéu
O cachimbo, o pincel
A batalha contra o eu
E as estrelas gritando no céu

(-Esquiva do gancho, pega o canalha!)

E assim, que toda fé (ou falta dela) se esqueça
Pois tudo faz sentido
Quanto tudo além do umbigo
Está de ponta cabeça

(E isso continua a não ser um poema.)

Grito Número Cento e Quarenta e Sete:

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

UM TROFÉU PARA UM FILHO DA PUTA


Estive percebendo a falta que me faz uns toques da minha antiga vida. Da nossa antiga vida.
Me faz falta correr no meio da noite até um posto de gasolina para voltar com uma sacola de cervejas, claras para mim, escuras para você. Sinto saudade do seu controle dos momentos em que devo ou não acender um cigarro. 
Sinto a falta de escrever os meus textos à meia-luz enquanto você repousa depois do sexo. Sinto falta do cheiro do nosso quarto depois do sexo. É claro que a quantidade de sexo também faz muita falta. 
Às vezes finjo que estou lendo para lembrar de umas trepadas colossais. Outras vezes, cheiro o meu antebraço finjindo que são suas costas. Me sinto patético e solitário nessas ocasiões. Como uma árvore do cerrado brasileiro: isolado e torto.
É engraçado ver que ao decorrer do tempo amadurecemos; mudam-se os costumes, os gostos e o jeito de viver. O semblante matura e o olhar para o mundo também. Mas o amor não tem escolha, ou fica jovem para sempre ou definha como uma flor daquelas que umas velhas vendem na volta das bodegas, o famoso "troféu-de-puta". E sei que o amor que sinto está jovial, afinal, eu busco isso, sempre vou buscar ser o amor mais puro que existe.
Foi então que, pensando em tudo isso, nas faltas, ausências e "troféus-de-puta" murchos que me dei conta que estou rejuvenescendo.
Meu caminho foi retrocedido e voltei no tempo. Voltei para a fase de ter hora para voltar para casa, de resolver problemas matemáticos que não tem relevância, nem utilidade para mim e para mais uma gama infinita da população do mundo. E estando eu jovem como anos atrás, estou fazendo malabarismos com um amor maduro. Parece que esqueci como lidar com isso. 
Elefante bêbado em loja de cristais. 
Filho da puta em dia dos pais.
E pode parecer que eu disto quando o assunto é o tal do "troféu-de-puta" murcho, mas a verdade é que os espinhos dessa flor do caralho doem muito mais do que qualquer puta desse mundo (ou filho dela) pode imaginar.

Foto por ElectricSixx

Grito Número Cento e Quarenta e Seis:

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

LACÔNICO

lacônico | adj.
(latim Laconicus, -a, -um, da Lacônia)
Breve, conciso; em poucas palavras.

Fiz uma poesia com mais de uma centena de versos duodecassílabos, rimas ricas e chave de ouro no final.
Com nanquim e pena passei para um papel fino e imponente, do preço por folha prefiro nem tecer comentários.
Quando lhe entreguei, recebi um tépido "que lindo".
Outro dia, depois de uma discussão filosófica no bar, entre bebidas e petiscos, brigamos feio.
Entreguei a ela um guardanapo de papel amassado, escrito à esferográfica (daquelas que ficam perdidas nas bolsas e bolsos):

"É amor, e ponto."

Ela me sorriu um sorriso desconcertado, inocente e lindamente incandescente (e ganhei o que queria com pedaço de guardanapo amassado).

Grito Número Cento e Quarenta e Cinco:

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

SOBRE TIRAR LIÇÕES DE FORÇA NO ASSASSINATO DE RASPUTIN

Sempre que leio, me espanto com o assassinato de Grigori Rasputin. De conselheiro do Czar a presunto russo.
Segundo a lenda, o poder de hipnose e controle da mente do místico de Petrogrado (atual São Petersburgo) era tão forte, que mesmo após se empanturrar com um jantar envenenado, não sentiu nem mesmo um mal-estar. Há quem diga que uma úlcera no estômago o salvou, mas a versão do controle da mente é mais interessante e instigante.
Após a tentativa falha de ser envenenado, fora fuzilado com onze tiros, que ainda assim não foram suficientes: o homem levantou.
Cansados e apavorados, espancaram-no até Rasputin ficar inconsciente, quando o jogaram desmaiado e de mãos atadas nas águas gélidas do rio Neva. Assim, não há poder da mente que aguente. O poder da mente era agora um pequeno pedrisco de gelo.
Não sei o quanto disso é lenda e quanto é fato. Não importa, o que vale é pensar no vigor e na força do personagem, e só. Um personagem ímpar e inabalável, nem mesmo por veneno ou tiros de fuzil.
E eu sofrendo por algumas palavras que me foram ditas...


Grito Número Cento e Quarenta e Quatro:

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O RÁDIO MONSTRO

Era uma radiola simples, não tocava fitas ou discos. Seus botões e painéis sugeriam um rosto robótico assustador aos olhos de algumas crianças. A menina sabia; o preâmbulo das cenas tristes, histéricas e deprimentes de sua vida eram dadas pelo ligar daquele tal rádio. O volume alto que chegava aos seus ouvidos fazia seu coração fibrilar e suas mãos tremerem.
Como qualquer pessoa normal, não gostava de brigas, ofensas gratuitas ou violência desmedida. Mas se o rádio maldito estivesse com seus transistores tinindo e fazendo a transmissão, era certo o destino do que seria recebido.
O morador insano sintonizava a AM: brigas sobre o que vai ser dos próximos dias ou como o gatinho que a menina carregava sempre em seu colo era asquerosa (o que era uma grande mentira). E voavam copos, vasos de flores e palavras pontiagudas. A reação da mistura das canções do rádio e das discussões sempre eram lágrimas, impreterivelmente. E sempre somente lágrimas da pequetita. O homem louco de bigode pontudo e olhos sem cor definida seguia a programação de uma rádio pirata em FM: o que gerava agressões físicas e degradações morais sem sentido.
Cansada de tantas farpas, a menina resolveu valer-se de toda sua sagacidade. Inverteu o circuito, mexeu nos transistores, entortou a antena para lá, para cá e para todas as outras direções depois disso, arrancou algumas peças e substitui por algumas partes específicas de sua boneca. Fez o trabalho de um Dr. Frankenstein do mundo sintético.
Era pouco mais de seis da manhã quando os dois homens de bigode subiam a escadaria discutindo se era hora de ouvir AM ou FM. E farfalhavam sobre o que era melhor, discutiam sobre as cantoras do rádio, sobre qual o melhor noticiário entre outras trivialidades.
Se aproximaram do aparelho de som e o puseram na tomada. A menina tapou os ouvidos e riu um sorriso afetado lá de longe. Um deles já girava o botão de sintonia antes mesmo do outro alcançar o plugue da tomada e ligar aquela radiola maldita.
Plugue na tomada, luzinha vermelha do stand-by, botão ON para cima, faísca, fumaça, curto circuito, explosão.
O rádio se partira em uma dúzia e meia de pedaços pelo chão. Os homens ajoelharam-se e recolheram os pedaços como se recolhessem partes de uma criança que pisara em uma mina terrestre. Um deles trouxe um saco pardo e vazio de pão e o fez de saco de lixo para os restos mortais do que um dia foi um eletrodoméstico. Jogaram o lixo no lixo.
Sentaram-se em suas cadeiras de vime como de costume, mas em pleno som do silêncio. Um deles abriu o jornal o outro acendeu o cachimbo cor de madeira cor de marfim. Ambos olharam para a menininha sorrindo suavemente por detrás de seus bigodes. Eis que um deles, entre goles de chá de anis-estrelado, diz para a menina:
-Que vestido adorável está usando, garotinha. Te faz mais linda.
-Tens razão. Combina com esses grandes e brilhantes olhos negros. - disse o homem mais velho.
A menina sorriu, e seguiu sorrindo até ser moça.
Não existia mais o som de rádio naquela casa modesta e ninguém mais fazia questão, o som da paz parecia ser um melhor motivo para dançar.

Grito Número Cento e Quarenta e Três:

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

SOU UM OPERÁRIO ÀS CEGAS

Quando eu enxergava, gostava das tirinhas do jornal. Ainda me lembro bem dos traços do Calvin e do Minduim, mas dos outros sobrou um grande borrão de nanquim na minha memória. Eu já não posso mais rir dos quadrinhos.
Já não posso mais acompanhar com a vista o rebolado das mulatas moças, das ruivas sardentas e de todas as outras. Me sobrou apenas o perfume para aspirar quando elas passam por mim, mas já nem ligo para os cheiros traiçoeiros.
Também não posso mais curtir o som da música. Com a audição aguçada pela falta de visão, quando não ouço o menor dos desafinos, que já fazem meus ouvidos sangrarem, eu apenas não suporto a batida dos pandeiros ou mesmo a respiração daquele que canta acompanhado do batuque de caixinha.
Do meu antigo trabalho pouco restou. Ainda sinto as marcas da botinada do patrão, que despediu o mais novo inválido do mundo. Me sobrou também o capacete alaranjado que eu usava quando estava no torno. Hoje em dia, o capacete me serve para arrecadar meus trocados na Domingos de Morais. Posso odiar quase todos os sons existentes, mas do barulho das moedas tilintando dentro do meu "elmo de proletário" eu gosto. É mais harmonioso e dá mais esperança que o som de qualquer samba, além de me garantir um prato feito, um cigarro solto e se a "recolha" do dia for boa, me sobra ainda um ou dois tragos de "Fogo Paulista".
Sempre espero que não seja julgado por meus vícios. As pessoas acham que quem passa o chapéu, esperando a comoção dos outros, não pode ter vícios. Quando a pessoa é desse tipo, faço questão de não enxergá-la mesmo. Sou só alguém comum, com erros iguais, com os mesmos medos e com alguns abalos e desventuras a mais no currículo. Sou alguém que leva desvantagem em um dia bonito ou em uma noite estrelada. Dia e noite, não importa, é sempre lua nova para mim.
Estou velho, minha barba branca já diz isso por mim. Eu não sei fazer mais nada além de ser torneiro, mas já devo ter esquecido disso também.
Mas há de se balancear a minha história. Não sou de ficar valendo apenas de choramingos. Sempre desconsidero o melhor e o pior de tudo isso para tentar ser imparcial. O melhor é ficar sentado e ouvir o barulho das moedas de quem eu acredito que tenha vaga lá no paraíso (e não estou falando da estação do metrô). O pior de tudo é não poder olhar essas pessoas nos olhos. Mas tenho na minha cabeça que são olhos brilhantes de criança, como um dia os meus já foram, antes de se tornarem opacos e sem cor alguma.

Grito Número Cento e Quarenta e Dois:

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O MELHOR E PIOR SURDO (OU O MELHOR DANÇARINO DA MINHA RUA)

Escuto músicas cujas letras dizem muito sobre sua pessoa, enquanto degusto um conhaque de segunda categoria.
Penso, suspiro, suponho, escrevo.
O conhaque é a bebida oficial da solitude.
Me imagino em uma valsa, mas eu não sei dançar nem isso. Não tenho ritmo, muito menos coordenação motora suficiente.
Sempre tropeço no meio-fio e nos desníveis das calçadas. Algumas vezes, tenho a proeza de tropeçar nos meus próprios pés.
Acendo um cigarro mentolado e o fumo jogando fumaça janela afora. Desta vez elas não formam desenhos, venta forte pelo corredor de prédios. A noite é fria.
Se existe um lugar que foi projetado para a melancolia ter estadia é este parapeito de janela.
Eu aprecio a vista da minha rua úmida, mal-iluminada e vazia e faço analogias óbvias e outras sem sentido fora da minha cabeça.
Apenas quero que exista uma canção sua com meu nome, na verdade, eu não quero nem ouvi-la. Ouvi-la me faria mudar de rumo.
Quero apenas que ela exista e seja a sua canção secreta. Aquela que está sempre fora do repertório. Aquela que nunca foi tocada depois de composta.
Quero que ela tenha poucos acordes, dos mais vagabundos e mal trabalhados.
Que a faça vomitar as borboletas que podem existir em sua barriga.
Que a faça voar.
Quero que essa música apenas exista, para que eu posso supor a sua letra, supor o lirismo em potencial, pois não me importo com o que pode ser ou com o que poderia ter sido.
Eu só me importo em sonhar.
E enquanto eu sonho, eu danço. Danço na rua úmida que é só minha.





Grito Número Cento e Quarenta e Um:

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O AMOR MAIS PURO QUE EXISTE


Existe na flor murcha com bom perfume.
Está no brilho do inseto que é o vaga-lume.
Está no beijo da moça em seu padrinho morto.
Existe no sentimento da criança pelo homem torto.

Está nos galhos de inverno que não sustentam flor.
Existe no maquinário enferrujado que solta nuvens de vapor.
Existe no luar da lua nova que não ilumina.
Está no delírio colorido de uma febre repentina.

Quarenta graus, quarenta-e-um. E as cores aumentam...

Existe na timidez do olhar desajeitado.
Está na tentativa de dança do esmoleiro aleijado.
Existe no riso contido do menino favelado.
Está na mão levada à boca do palavrão que escapoliu.

Está no remédio amargo que, no final das contas, cura.
Existe em achar que ama, não dizer e fingir que é tortura.
Está na tristeza que surge justamente na noite mais escura.
Existe na auto-ironia do monógolo do mal-amado.

Está nas vielas sujas e nos tapetes vermelhos.
Existe nas prostitutas dos becos e nas freiras de joelhos.
Está no torpe e vil e também no canonizado.
E viverá eternamente no sorriso franco dos desdentados.

Grito Número Cento e Quarenta:

terça-feira, 8 de novembro de 2011

MEMENTO MORI

É fato sabido que todas as pessoas tem problemas a serem superados. Um dos mais edificantes para elas é vencer uma morte iminente, ainda que o caminho mais suave seja morrer. Porém, existem problemas em todas as facetas da vida humana, na social, acadêmica ou amorosa. Viver é transpor as barreiras impostas pela vida. O suor da vida tem gosto adocicado.
Não é raro sabermos de uma história de um personagem da mundo real que superou grandes limites; uma doença, uma perda familiar ou uma árdua escalada até a conquista de um curso superior. Estas histórias cativam e inspiram muitos, principalmente os portadores de problemas semelhantes.
A vida balbucia entre o prazer e a dor, entre momentos de plumas e lâminas. Estes dois polos de sensasões são inerentes aos próprios caminhos da vida. Há séculos a filosofia estuda a necessidade do homem de buscar prazer e fugir da dor. Há quem diga que o martírio é o caminho do triunfo e que o mesmo dá mais sabor aos momentos posteriores de glória.
A máxima latina "memento mori" significa "lembre-te, homem, que um dia irá morrer". Um homem só inicia sua vida no dia em que descobre que ela logo mais terá fim. Aquele que quer se sentir vivo deve recordar desse lema dia após dia e com isso tomar o fôlego para vencer e superar os fracassos e entender, na mais bela epifania, que mesmo sendo sinuoso, oscilando entre a dor e o prazer, o melhor desta vida é viver.

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"Tyler Durden: Escute aqui! Você tem que considerar a possibilidade de que Deus não gosta de você. Ele nunca te quis. Que provavelmente, Ele te odeia. Isso não é o pior que pode acontecer.
Narrador: Não é?
(...)
Tyler Durden: Dane-se a condenação, cara! Dane-se a redenção! Nós somos os filhos indesejados de Deus? Então que seja!
Narrador: OK. Me dá um pouco de água!
Tyler Durden: Escuta, você pode passar água na sua mão e fazer a queimadura piorar ou...
Narrador: [grita]
Tyler Durden: Olhe para mim... ou você pode usar vinagre e neutralizar a quimadura.
Narrador: Por favor, me dê... Por favor!
Tyler Durden: Primeiro você tem que se render, primeiro você tem que SABER... não temer... SABER... que um dia você vai morrer."

Diálogo da Queimadura Química - Clube da Luta

Grito Número Cento e Trinta e Nove:

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

SOBRE DITADORES MORTOS, MISSÕES TERRORISTAS IMAGINÁRIAS E POMBAS MORIBUNDAS

Pela manhã, enchi minha caneca amarela de café e fiquei observando (pela enésima vez) a fumaça fazer formas divertidas.
Antes mesmo de abrir o jornal, li a manchete. A primavera árabe tinha vencido. Kadafi estava morto. E eu sabia o quanto o povo da Líbia tinha a comemorar. Eu mesmo estaria dançando a morte do símbolo de mais de quarenta anos de ditadura e opressão.
Comecei então a pensar em me tornar um assassino político. Um Guy Fawkes tupiniquim que viajaria até Brasília, detonaria toda a obra do Niemeyer e faria um espetáculo de pólvora e tortura com cada símbolo de corrupção, sujeira e sacanagem que habita o planalto central. Assassinei mentalmente vários políticos que me irritam por simbolizar toda a corja de bandidos que dão destino a esse país.
Até me imaginei sendo preso e dando depoimento para o Jornal Nacional, com aquela cara de fanático atormentado: “O povo brasileiro sabe que sou um herói, um herói do povo!”. Pensei que teria realmente coragem de tirar a vida de um fascista nojento que compra o voto dos mais pobres e ignorantes.
Um tempo depois, estava próximo da Avenida Paulista e resolvi parar em um boteco de segunda categoria para um belisco entre o desjejum e o almoço. Pedi dois ovos cozidos coloridos, um azul e um rosa. Se você é um paulistano e não comeu nunca em sua vida um ovo colorido, não é um paulistano genuíno. Se você não é paulistano, mas já comeu um ovo colorido numa bodega duvidosa em São Paulo, é praticamente um paulistano. O mesmo serve para churrasquinho grego e aqueles torresmos peludos. Vale também para quem tornou tomar café da manhã na padaria um hábito.
Quando saí do botequim, vi uma pomba encostada no canto de uma livraria, que eu pretendia entrar, mas ainda estava fechada. A pomba era toda preta, não fosse o seu formato tão característico, seria um corvo. Ela se equilibrava em uma das patas e encolhia a cabeça para dentro do corpo. Não voava, mesmo se sentindo ameaçada pelos transeuntes. Suas penas estavam opacas e seus olhos piscavam devagar.
Eu sabia (e não era preciso ser um veterinário ou um cientista para notar) que o bicho estava para morrer.
Meu coração se encheu de tristeza ao ver a decadência de um dos animais mais decadentes de todo o reino animália. De símbolo do espírito santo para rato de asas. E aquele pombo em específico, de rato de asas para rato moribundo.
Tentei me convencer de que não deveria ter pena de um animal que é uma praga nos grandes centros urbanos e que é vetor de uma infinita gama de doenças. Mas a decadência da decadência sempre amorna o meu peito. Eu tenho afinidade com o fundo do poço.
Cheguei a conclusão de que não teria coragem de ser o assassino da minha missão imaginária “Fawkes Tupiniquim”, que eu tinha arquitetado pela manhã, pelo simples fato de que eu tinha respeito aé pela vida dos ratos de asas dos centros das cidades. Mas depois concluí que os pombos não são tão asquerosos como os detestáveis de Brasília.
No final, senti que seria incapaz de tirar uma vida, ainda que dos grandiosos filhos da puta que estão no comando. Me senti um inútil por um segundo, mas percebi que a maneira que eu tenho para lutar é minha tentativa de tirar doçura de um cenário cuja protagonista é uma pomba moribunda.

Grito Número Cento e Trinta e Oito:

terça-feira, 1 de novembro de 2011

SOBRE O RÍMEL VALER COMO MOLDURA

A conheci nos últimos meses. Sempre me destacou a maquiagem levemente borrada que cercavam seus cílios compridos. Acho que ela chorava escondido sempre. Já a vi chorando uma vez, era de cortar o coração. Aquela maquiagem borrada era como a moldura do lindo quadro que eram seus grandes olhos escuros.
Sempre me sorria um sorriso juvenil e simpático. Trocávamos pouco mais que cumprimentos formais.
Um dia fiz uma pequena caricatura no canto de minha caderneta e entreguei para ela.

- Sou eu? - ela me pergunta rindo.
- Sim. Os olhos não correspondem, parece que no desenho você está hipnotizando alguém. Mas no geral, está parecido. - respondi.
- Está muito legal. - disse sorrindo seu sincero sorriso espontâneo.

Outro dia, enquanto ela contava as cédulas de dinheiro, me mostrou que guardara o meu rabisco em sua carteira. Para mim, aquilo tinha mais valor do que se eu expusesse grandes telas nas pinacotecas mais badaladas de São Paulo.
Em um certo momento, estava assistindo a um documentário sobre imagens, cenários e composição cinematográfica e comecei a rabiscar um bloco de papel reciclado enquanto assistia. Eu estou sempre rabiscando alguma coisa. E percebi que o pedaço de semblante que eu havia desenhado, do lado de outros desenhos irrelevantes, era muito semelhante ao dela. Eram os olhos dela, os olhos que não estavam compatíveis com a caricatura de canto de caderno que eu havia feito.
E o que narrei agora não foi fruto de uma paixão pueril, de um amor de perdição ou de atração sexual por uma mulher, foi apenas uma epifania trazida à tona por um par de olhos escuros e brilhantes.
O que me rendeu observar esse par de olhos e desenhá-los depois foi descobrir que enquanto muitos pensam em mudar o mundo cortando cabeças de ditadores, jogando molotovs flamejantes nas embaixadas, fazendo poemas-protesto contra o parnasianismo ou votando nulo nas eleições presidenciais, esta mocinha mudava o mundo simplesmente passando sua vista por sobre as pessoas.

Grito Número Cento e Trinta e Sete:

domingo, 30 de outubro de 2011

MEMÓRIA DO AMADEU

Meu tio Amadeu era dono de um pequeno sebo numa travessa da Teodoro Sampaio. Me lembro de sua imagem sentado entre os livros, fumando seu cigarro, com sua caneca de café nas mãos. Lembro que o sebo era muito limpo e organizado. Brinquei com ele algumas vezes que para o sebo dele criar cara de sebo, tinha que bagunçar todas estantes e deixar tudo úmido.
Me lembro também, com muita nitidez, que nas festas de natal da família ele me perguntava, na mais pura brincadeira, se eu não gostaria de mudar meu nome de Daniel para Amadeu, pois era supostamente um nome muito mais bonito. Ele também me ensinou que de um sanduíche de padaria se faz três, porque na padaria eles sempre põe mortadela suficiente para isso, portanto é só pedir dois pãezinhos a mais junto com o lanche.
Ríamos disso enquanto ele bebia suas latinhas de cerveja sem álcool.
Não éramos muito próximos, mas sempre soube tirar intensidade dos nossos escassos encontros. Amadeu era irmão da falecida esposa de meu tio-avô materno.Era tio dos meus primos de segundo grau. Na verdade, ele era parente dos meus parentes e não meu.
Amadeu não tinha o mesmo sangue que o meu correndo em suas veias. Não éramos parentes de sangue, mas hoje, quando me flagro em meio dos meus livros, segurando a minha caneca amarela fumegante cheia de café fresco e aspirando tudo que é possível ver de belo nesse mundo, vejo que antes de partir, meu tio Amadeu deixou um pouco de seu sangue dentro de mim.

Grito Número Cento e Trinta e Seis:

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ELA(S) E AS NOTAS

Eu tinha deixado minhas notas sobre a mesa e saído para tomar uns drinques no bar em que existia no térreo do prédio onde ficava o quarto que eu alugara nos dois últimos meses. Ela dormia profundamente e não cri que fosse um descuido.
Eram partes de muitos pensamentos, sentidos, sabores e experiências manchadas de vinho barato e café solúvel. Essas notas são pequenos orgasmos de nanquim perdidos num escroto chamado caderneta. Quando encontro um óvulo, que é a conclusão ou epifania de uma porra qualquer (literalmente-figurada, nesse caso), nasce o embrião de uma crônica minha.
Mas voltando, as notas estavam sobre a mesa e eu estava pedindo uma cerveja qualquer, desde que a garrafa fosse de vidro verde. Foi quando lembrei que as notas estavam escancaradas e esparramadas e que talvez ela acordasse do sono de vinho e lesse algum pedaço de papel que dissesse respeito a sua pessoa. Estavam ali as fodas selvagens e as brigas de garrafas-projétil (que normalmente terminavam em novas fodas selvagens). Ali estavam suas qualidades que eu nunca elogiava e seus defeitos que eu não dava importância. As notas contavam de velhos tempos meus, de prostitutas e conhaque, da época que fui expulso do clube de charutos, do tempo que acreditei que usar bigode me faria mais charmoso e menos solitário.
(...)
Que cerveja espetacular, é belga? Holandesa? Interessante... Falar das notas? Que notas?
Ah! Me perdi de novo! Estava falando sobre a ânsia que me veio de correr para o quarto para impedir que ela lesse as notas que saíriam no livro que eu ia publicar naquele tempo, não me lembro o nome agora, já faz uns bons anos. Acho que era "Alguma Coisa Não Existe em São Paulo" não me lembro se era "Solidão", "Vidro Limpo" ou "Fazer Feio", não importa. Eu sabia que depois de publicado ela não leria, pois sei que ela não gastaria o dinheiro do vinho e dos cigarros de menta em livros, ainda que meus, ainda MAIS dos meus, ainda que fossem dela mesmo, se soubesse escrever qualquer merda que prestasse. Uma vez, na animação de me ver datilografando, me escreveu um soneto horrível, senti vontade de vomitar quando li tamanho lixo. Era um pelo do cu do Pablo Neruda. Ela só era boa em dar colo para o meu pensar de bêbado, em me dar apoio para meu andar embriagado, em trepar sóbrio ou transbordando vinho pelos poros.
Então... as notas na mesa! Tomei dois goles grandes da cerveja e deixei uma nota de cinco para pagar a long neck, deixei o troco pra trás e naquela época, cada centavo fazia falta. No meio da escadaria, joguei a garrafa no chão, agora vazia, mas ainda (e eternamente) verde. Segui correndo até o sexto andar, fim do corredor, quarto 609.
Peguei minha chave, trêmulo e com uma dificuldade facilmente superada, abri a porta.
O quarto tinha um preço ótimo, por isso tantas semanas por lá, mas era um pouco fedido e mofado e a água da pia tinha gosto de ferro. As paredes tinham musgo e o armário da mini-cozinha usava arame no lugar das dobradiças das portas. Um muquifo de requinte.
Perdi o foco novamente, do que eu estava falando mesmo? Ah, dela e das notas!
Então, não me lembro direito quem era ela e não me lembro se ela leu ou não as notas, se eu publiquei as tais notas em um de meus livros e se nos meus livros já falei sobre isso.
Mas falando nisso me lembrei de uma coisa. Estamos aqui conversando, o papo está ótimo, mas eu deixei umas notas em cima da mesinha de café no quarto que aluguei essa semana, bem aqui em cima desse bar em que estamos bebendo agora nossas cervejas holandesas, e uma moça que conheci na noite passada, aqui no bar, está dormindo na minha cama agora e não quero que ela leia as notas que falam sobre ela e o que fizemos ontem. Vou subir até lá e dar uma checada se ela não acordou e guardar as notas na pasta, o lugar mais seguro para elas. Mais tarde eu volto para terminarmos essa cerveja e eu vou lhe contar uma história que aconteceu comigo, quando uma de minhas mulheres leu sobre ela.

Grito Número Cento e Trinta e Cinco:

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

PORQUE MEU CORAÇÃO É DESSES QUE ANDAM NA CHUVA...

Eu sempre fui dessas pessoas do acaso, que recebem o frio repentino de regata e bermuda e que recebem a chuva sem ter nem mesmo um chapéu para se abrigar dos pingos. Já perdi as contas de quantas vezes cheguei encharcado em minha casa, inundando todo o caminho até um lugar onde pudesse alcançar uma toalha e um par de peças secas.
Todos os dias a acompanhava com meus olhos, para notar o que ela trazia consigo além do seu simpático sorriso. Sempre em sua bolsa de tecido havia um guarda-chuva dependurado. Estivesse o tempo chuvoso ou ensolarado, ele estaria lá. Sempre me chamou muita atenção, pois se passavam semanas sem chuva e ela seguia munida da proteção pluvial.
Pode ser que eu esteja imaginando, mas tenho uma vaga lembrança de ter pego alguma carona debaixo daquele guarda-chuva em algum final de tarde que o céu resolveu desaguar.
E em paralelo a esse hábito de sempre estar protegido da chuva, quer ela venha, quer não, penso em meu coração.
Penso que meu coração, talvez por ser parte de mim, seja simplesmente como eu. Desse tipo que anda ao acaso sem guarda-chuvas, sem documentos, de chinelo pelas poças.
E é claro, que a chuva chega para ele também, e se molha, e se encharca, e se empapa de água e sai navegando pelas vielas procurando uma boca-de-lobo para se perder de mim de vez. Mas eu o amarrei firme num cordel para que isso jamais acontecesse. Deixo ele ir com a força das águas, mas sempre puxo de volta quando o cordel me avisa que é hora de se preocupar.
Talvez hoje, um dia de chuva pesada, fosse o dia de aprender com a mocinha que sempre se vale de seu guarda-chuva, e arranjar uma proteção definitiva para a chuva que lava minha alma e o meu coração de pessoa que anda ao acaso de chinelo pelas poças.
Mas eu nunca aprendo...

Grito Número Cento e Trinta e Quatro:

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

SONHOS DE QUASÍMODO

Funesto, bestificado
Carne crua, mal amado
Cigana nua, ele amordaçado
Estranho amor, estranho amor...

Triste, puro,
Deformado.
Bela e cruel,
Fazendo seu papel.
Quanta dor, quanta dor!

Pelas torres se esgueirando
As gárgulas se faziam irônicas
As carolas tão atônitas
A gritar, a gozar

Deixou o cancro tomar-lhe o corpo
Sua doença foi tomar a luz ofuscada pelos vitrais
O sineiro fez sua vez

Victor, o que você criou?
Com suas badaladas mortais,
Mais uma gárgula para as catedrais!
A sabatina começou!

Sabatina nas catedrais!
Serpentina nos carnavais!
E o pobre cheirando os restos mortais
Daquela que nunca o amou...

Sobrou martírio nas ossadas
A última tentativa do jamais-amado
Resquício das covas entrelaçadas
Dois esqueletos, um esguio e um deformado

O leito rochoso lhe deu a maldita paz!
Surdo, coxo, infeliz
É hora da última badalada

Grito Número Cento e Trinta e Três:

domingo, 2 de outubro de 2011


ZUMBI DO MIOCÁRDIO

Meu coração é um navio negreiro
Que parte da África central
Quantos homens fortes e inteiros!
Quanto trabalho veemente em potencial!

Mas é fato que o caminho é traiçoeiro e o mapa falha
E parte dos negros morre ou se mata ainda na nau
A doença se espalha, e com toda gentalha...
É um escravo somente que combate o mal

Entre adaga e chicote o escravo foge no trote
Matando o vil capitão do navio
E foge por mata adentro

Foi este guerreiro escuro que tornou em mim o coração duro
Sofrido peito imundo e vazio
Mas com semente de flores bonitas por dentro



Ilustração de Joey Hx Core, que pediu para participar de um grito mudo.

Grito Número Cento e Trinta e Dois:

terça-feira, 27 de setembro de 2011


TIGRES SEM DENTES NÃO ME BOTAM MAIS MEDO


Eu já fui um filhote de tigre.
E sempre que fui ronronando buscar o calor do colo tomava mordidas.
E fui perdendo parte dos pelos, ganhando cicatrizes.
Perdi a vista de um dos olhos, tomando patadas.
Acabei deixando de ser tigre, para ser algo mais manso e mais cruel ao mesmo tempo.
E eu nunca esqueci que sou tigre, mesmo devorando das flores e não dos cervos, mesmo não tendo me sobrado mais pelos de tigre, mesmo agora que minha vista de lince foi cegada com farpas.
Sou um tigre que dorme com os corvos que dizem "nunca mais", um tigre que se alimenta de flores do mal.
Um dia, mesmo cheio de cicatrizes e sabendo qual seria a reação, busquei o aconchego mais uma vez. O último suspiro da esperança tola e sonhadora.
E como se eu fosse uma presa, voou com seus dentes pontudos para cima de mim.
Sem pensar, instantaneamente, enfiei-lhe a pata na cara.
Caído ao chão, pisei na sua fuça meia dezena de vezes, até não sobrar nenhum dente em sua boca maldita e nervosa.
Depois desse dia, as mordidas deixaram de doer, e as farpas, como diriam meus amigos corvos, "nunca mais".




Grito Número Cento e Trinta e Um:

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

BELO CARRO ADORMECIDO (OU BRASÍLIA DE ABÓBORA)

Eu não sou um "poeta das ruas". Aliás, ser poeta nada vale para mim. O poeta transpira e constrói com o suor.
Eu apenas vomito e destruo com meu vômito avesso.
Estou escrevendo em um capô de carro abandonado.
Molhei meus fósforos de propósito na poça de chuva que tem no teto amassado.
Acabou para eles.
Talvez esteja tudo acabado para mim também.
Talvez eu esteja escrevendo baboseiras que não servem para nada.
Talvez meu coração seja como este velho carro enferrujado que me serve de escrivaninha.

- Pobre menino rico...

Fiz um desenho na poeira do para-brisa.
Um coração tosco que vai ficar marcado ali até a chuva levar e estragar tudo; que talvez já tenha sido fabricado com defeito.

E todos olham com nojo, com espanto.As vitrines refletem um crânio com roupas.
Como se no meio de uma feira de importados estivesse um carro podre como este, que ninguém quer.
Mas talvez a feira seja de carros populares, novos ou usados, mas sempre populares.
E pela poeira deste daqui, e ferrugem, e pneus murchos, deixou de ser popular há muito tempo.
Mas mesmo feioso e desajeitado, não deixou de ser um belo adormecido.

(...)

Foi no domingo que resolvi ligar para alguém e vomitar toda a angústia. A amiga que me atendeu não sabia que era eu.

Ela disse: "Aparece no visor: NÚMERO RESTRITO...". Isso aparece para todo mundo, não sei mudar essa configuração no telefone.Itálico
Talvez eu não saiba mudar isso em minha própria vida e eu seja restrito para todo mundo. Seja carne, osso, gordura e textos meus.
Li para ela o que tinha escrito até então de "Belo Carro Adormecido". Ela comentou:

- Parece um preâmbulo de algo maravilhoso que ainda não foi escrito.

"ABORTAR MISSÃO, A TURBINA FOI PREJUDICADA.
HOUSTON, WE HAVE A PROBLEM."

(...)

Voltei na segunda feira para olhar o automóvel adormecido, na esperança que me rendesse a tal "coisa maravilhosa" que faltava, porque, diabos, eu vivo disso e por causa isso.
No caminho vi alguns milicos marchando e cantando "Johnny Furacão" e imaginei James Dean atropelando todos eles. Sorri com o canto da boca.
Cheguei e os fósforos haviam sido soprados para fora da poça e estavam secos, provavelmente se acenderiam com a primeira ou segunda tentativa.
Talvez não esteja tudo tão perdido assim.


Cantarolei o verso de uma canção que
conheço bem: "não quero ver mais uma vez essa série em que a gente sangra tanto, meu bem..."
O coração desenhado na poeira estava lá, intacto. E estamos na "terra da garoa". Do lado, um jornal no limpador dizia: "O pesadelo começa na garagem."
Talvez haja esperança.
Talvez seja somente a garagem.
E quando eu beijar esta carcaça apodrecida com o tal do "amor mais puro que existe" e colocar as mãos no volante com paixão, como James Dean, esta abóbora fora do prazo de validade, este resto de feira que nenhum mendigo quis sorver, se transforme no maior possante da história e suma, voando a 300km/h no meio do cosmo, dançando com as estrelas.
E alguém (dos que olharam o crânio com roupas) vai dizer:

- Lá vai o melhor piloto do mundo, na maior máquina que o universo já viu...

Foi assim que eu decolei, em uma Brasilia 1600 feita de abóbora...

Grito Número Cento e Trinta:

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

UM FÓSFORO DE EMMA GOLDMAN

Fiz de anéis os pinos de granadas.
Casamento de pólvora.
Dancemos na noite sem esperar por alvorada.
Ouço de fundo os canhões de glória.
A guerra terminou e varreu os homens valentes e covardes.
Varreu a lua e as estrelas da tarde.
Ah, como te amo, estopim!
Justamente por ser estopim.
Ser o meio entre a ânsia da beleza e os fogos de artifício formando cores leves no céu de aço.
Deixei meus cigarros de lado.
E usei meu último fósforo em ti.
As fagulhas são preâmbulo, o lançamento é o crescendo.
E os fogos coloridos somos nós, trasmutando do largo para o vivace, dançando meio ao caos.
Porque esta não é nossa revolução se não pudermos dançar, não é mesmo?

Grito Número Cento e Vinte e Nove:

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

AVESSO DO AVESSO DO AVESSO DO AVESSO


Final de tarde de um domingo de setembro. Estava quente e não estava programado para tal calor. Agasalhado, suava dentro do metrô. Não gosto de carregar roupas, já havia um livro em minhas mãos e resolvi suar até o final dos trilhos da linha azul. Estava voltando da rodoviária do Tietê, fui designado por familiares para acompanhar uma moça que desconhecia a cidade e precisava pegar um ônibus.
Fui olhar as horas e me dei conta que não havia relógio em meu pulso.

- Será que tirei antes de sair de casa ou será que alguém de mão leve me levou e nem percebi? - falei sozinho.

No vagão, crianças riam alto e brincavam, gargalhavam e agiam de modo escandaloso. Aquilo me irritou e atrapalhou minha leitura.Resolvi mudar de vagão para conseguir ler.
Me chamou atenção um agrupamento de pessoas sentadas em um canto de meu novo vagão. Uma senhora oriental lia um periódico do Seicho-No-Ie, logo ao lado, pai e filha, ambos de cabelos negros e longos sorriam um ao outro e usavam camisetas de heavy metal com desenhos do Demônio (com direito a tridente e tudo mais). Mais atrás, um rapaz transpirava sua homossexualidade no jeans desfiado e no seu tênis com lantejoulas, bem como em seu cabelo de corte moderno e cheio de glamour, acho que cantarolava uma canção da Lady Gaga. Ao lado do rapaz, uma freira albina, de cabelos, cílios e sobrancelhas branquíssimos, olhos vermelhos e pele rosada, segurava em mãos um terço de madeira. No final do agrupamento duas mulheres, aparentemente da vida, cruzavam suas pernas roliças e desnudas e falavam sobre homens de dinheiro (provavelmente deslocavam-se para o trabalho dominical de vender amor para homens tristes).
Quanta diversidade em pouco mais de um metro quadrado, pensei comigo.

Depois pensei:

- Obrigado, São Paulo de todo o mundo, por me dar tanto e pedir tão pouco em troca. Como sou grato, São Paulo, por deixar tão claro que "os novos baianos te podem curtir numa boa".

Grito Número Cento e Vinte e Oito:

domingo, 11 de setembro de 2011

NÃO ME LEIA MAIS, POR FAVOR

Não quero que corra mais os olhos por meu corpo.

Vou fugir das suas vistas e de suas leituras matinais e nas madrugadas.

Não adianta sentar na poltrona macia e acender a luminária.

Não vai adiantar colocar café fresco e quente em sua caneca favorita, como se fosse um ode às coisas que amo.
Como se fosse uma oferenda às boas leituras.

Não quero que passe os olhos no que está escrito em mim, pois meu coração está nas entrelinhas.

E isso você não sabe ler.

Grito Número Cento e Vinte e Sete:

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CARTAS RUSSAS


Elas foram encaminhadas para São Petersburgo, espero que voltem num dia de chuva para esquentar o que o conhaque não conseguirá jamais aquecer.

Grito Número Cento e Vinte e Seis:

terça-feira, 6 de setembro de 2011

UMA REFEIÇÃO PARA UM HENRY CHINASKI (DE PADARIA)

Acordara com a sensação de ter um tijolo no estômago, sua pele estava fria e na testa, gotículas de suor marcavam seu semblante.
Negou seu desjejum, negou até mesmo o café preto bem servido em sua caneca amarelo-cádmio. Seus dedos estavam trêmulos.
Rodou pelo largo Dona Ana Rosa por toda manhã, fumando sem parar, tremendo os dedos sem parar, imaginando mil situações desagradáveis em um ritmo completamente acelerado.
Chegada a hora de retomar a rotina, sentou, sem almoçar, sem qualquer migalha na barriga e recomeçou os trabalhos do dia anterior.
Quando ela chegou e sentou ao seu lado, aquele tijolo coberto de lodo, guardado em sua barriga, sofreu metamorfose em borboletas. E a tremulação dos dedos se espalhou pelas mãos e braços.

- Acredita que não comi nada hoje? - disse.
- Você precisa se alimentar, está corrido o dia hoje, deve estar bem nutrido.

Então olhou suas madeixas negras e brilhantes escorrerem por seu rosto quando soltou seu cabelo.
E seguiu olhando para os seus olhos cor de sombra queimada. Pareciam queimá-lo por dentro.

- Você ouviu o que eu disse? Dia corrido, bem nutrido!
- Acho que nunca estive tão bem nutrido como estou neste momento.

E depois de sorrir, foi trabalhar em suas enormes pilhas de papéis.

Grito Número Cento e Vinte e Cinco:

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

E NEM SOUBERAM DA OPÇÃO DE TER UM FINAL FELIZ...

Fui o primeiro a entrar no carro. Meu trajeto demorava pouco menos de hora e meia de ônibus. Enquanto as pessoas embarcavam do terminal para o comboio, reparava nos tipos que entravam: mulheres religiosas, malandros de bar, mães feias com crianças de colo igualmente feias, até mesmo um policial fardado com um bigode eriçado.
Quando entrou uma moça vistosa, de cabelos longos e dourados, vestindo preto (contrastando com sua pele branca) e portando um decote raso e modesto no busto. Sorri, não por sua beleza ou coisa que o valha, pois eu sorrio para as pessoas que olham para mim por mais de dois segundos. Normalmente quem é reparado ou flagrado reparando, devia o olhar. Pois eu gosto de sorrir, como se estivesse oferecendo algo de valor com meus dentes amarelos de café.
A mocinha se aconchegou no assento a minha frente. Na diagonal sentou um homem de vestes sujas e pele destruída e enrugada de sol, com olhos de cor de águas caribenhas, não se pode dizer se são azuis ou verdes.
O homem ficou fitando o decote da moça e mordia os lábios, virava o corpo e repetia a ação a cada par de minutos. Parecia fingir ser uma estrela do pornô prestes a entrar em cena. Foi aí que comecei a me incomodar com a ação reiterada do indivíduo. A pobre moça, violentada com aqueles olhos claros e febris não havia reparado no que estava acontecendo.
Eu penso que não há mal em reparar e desejar as belas mulheres da metrópole, mas que isso não passe de jogos de olhares respeitosos e desejos internos, sem que caiam na vulgaridade de animais no cio.

E o olhar febril seguia...

Pois quando resolvi me levantar e colocar-me em pé frente a garota, numa atitude heróia e quixotesca de proteger Dulcinéia alheia dos olhos insistentes, um homem gordo, que cantarolava uma música popular de gosto duvidoso, obstruiu a visão do observador maltrapilho e vulgar.
E foi neste dia que Sancho foi herói sem se dar conta. E é assim todos os dias, em São Paulo e Pequim, em Nova Iorque e Paris, em Dublin e Moscou, mulheres são salvas por seus heróis e ambos não percebem e acabam por nunca saber que o adequado é que vivam felizes para sempre.

Grito Número Cento e Vinte e Quatro:

domingo, 4 de setembro de 2011


NÃO EXISTE MAIS SORRISO, NEM EM ESTOQUE, NEM PLÁSTICO

Passei em frente a uma loja de máscaras na Domingos de Morais, esquina com a Praça Dr. Vidigal.
Entrei para admirar as máscaras somente, sem pretenção de comprar nada, até porque não tinha dinheiro para gastar com máscaras num final de mês de agosto.
Depois de alguns minutos, a atendente da loja pergunta:

- Procura algo em específico?
- Quero uma máscara com um sorriso bonito. - respondi.
- Hmmm... sorriso bonito. Não tenho nada assim agora. O que tem está aí pendurado.

Monstros dentuços, bruxas banguelas, múmias, políticos, gatos, galinhas, macacos, caveiras...

- Por que você não leva uma máscara branca e pinta o seu sorriso?
- Eu não sei pintar sorrisos.
- Então leva uma de monstro, vai ficar legal!
- De monstro eu já tenho várias e não tiro nunca. Queria uma que fosse diferente...
- (...) Volta no começo do mês, vou ver se te arranjo um sorriso.
- Migalha eu não quero. - pensei comigo, sem dizer.

Segui pela Domingos de Morais procurando um sorriso de qualquer estranho e fiquei no Largo Ana Rosa, mas só passavam por mim bocas sérias e fechadas...

Grito Número Cento e Vinte e Três:

sábado, 3 de setembro de 2011

E DENTRO DAS SEMENTES... FLOR!


Caminhou por toda América, de ponta a ponta, de costa a costa.
Viu desertos, montanhas e jardins.
E ele sabia que depois de sentir o cheiro das rosas, as sementes seriam apenas sementes.
E de suas verborragias solitárias e monólogos mentais, enquanto caminhava ou corria, só soube falar de flores até o fim de sua vida.
Muito velho se instalou no Atacama e lá passou seus últimos anos.
Lá não havia flores. Lá não havia sementes.
Foi algoz e impiedoso consigo mesmo ao escolher o mais árido dos lares.
E sua alma se foi de seu corpo enfermo e rugoso.
Mas em seus campos elísios encontrou apenas sacas e secas de sementes.

E Hades, jocoso, disse:

- Se quer ver flores, plante.
- Puxa, Seu Hades, não sabia disso! - e sorriu pegando a primeira saca e colocando em sua corcunda.

Grito Número Cento e Vinte e Dois:

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

POSITIVO E OPERANTE

Já faz mais de cinco anos que o observo. É dono de uma pequena banca de petiscos na Rua Vergueiro. Vende sucos, balas, salgadinhos e outras coisas com gosto de infância. Mas não são seus produtos que me chamam a atenção. Nem mesmo a letra de "Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores", de Vandré, pintada na lateral da banquinha.
Todos os dias bem cedo, ele faz as amarras do toldo de sua banca, arma uma cadeira de praia velha, devora uma fruta e lê o jornal, tudo isso sem usar as mãos, até porque ele não as tem. Pelas cicatrizes julgo ser amputado, mas talvez seja de nascença, quem sabe.
Um dos membros acaba logo depois do cotovelo, lado que usa como uma pinça para seguras as coisas, de jornais às maçãs. O outro vai até os dedos da mão, mas sem o polegar, e os dedos que lhe sobram parecem com garras de um velho com artrite severa.
Como não pode pegar as moedas que as pessoas lhe pagam, pede para que coloquem no display na ordem dos valores (da escassa moeda de 1 centavo até as de 1 real), pede também para que peguem o troco. Nunca pede para que mostrem o valor pego. Talvez ele acredite que ninguém tem coragem de roubar moedas de um aleijado, talvez confie plenamente no coração das pessoas. E sempre sorri.
Não gosta de dar informações, razão pela qual imprimiu um cartaz com as principais perguntas que podem lhe fazer; é um visionário: fez um FAQ sem mesmo saber o que é isso.
E olhando este homem toda vez que posso me faz crer que nada é um obstáculo de verdade e que por detrás de cada passo duro existe algo a ser aprendido, independente de karma ou força divina, aprender a ser um ser humano melhor e mais forte.
E ainda que ali naqueles membros não haja polegares para enviar um sinal de positivo, existe um sinal positivo muito mais forte por detrás de seus óculos arredondados. Sempre e positivo e operante, "quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

Grito Número Cento e Vinte e Um:

segunda-feira, 29 de agosto de 2011


CAFÉ DOCE, AÇÚCAR TRISTE

Enquanto não chegava a hora do compromisso, me sentei em uma tradicional "padoca" em uma travessa da Domingos de Morais.

- Um café puro, por favor.

Como é bonito um copo americano de café no balcão de granito.
Como são bonitas as laranjas penduradas que convidam o paulistano a entrar e tomar
suco no café da manhã.

- Odeio café com açúcar!
- Você não sabia que tinha? - perguntou o balconista.
- Sabia sim. - respondi.
- E então?
- É que eu gosto de sofrer.
- Fala sério, seu doido! - disse o balconista com tom jocoso.
- Olha como o copo é bonito... ele me deixa menos triste. Mas beber essa coisa doce me devolve a toda a tristeza.
- (...) (sorriso amarelo)
- Fico na mesma que os outros, que estão tomando suco de laranja ou comendo pão com manteiga. É só um café.
Nem feliz, nem triste. Só estou tomando café da manhã.
- Deu mil e oitocentos, amigo. O café, o cigarro e a bala de hortelã.
- Fica com o troco.

E saí para tentar (em vão) chorar sozinho no Largo Ana Rosa.

Grito Número Cento e Vinte:

domingo, 28 de agosto de 2011


SOBRE JUJUBAS E ELEFANTES MURCHOS



Uma colega de caneta, dessas que a gente não conhece pessoalmente, mas já leu uma verdadeira antologia de produções da pessoa, sempre soltava sua máxima: "Jujubas e Elefantes Murchos".
Ora, diabos, se estes elefantes estão murchos, por que não comem as jujubas?
Na verdade, eles comiam, mas as jujubas eram pedriscos e aqueles paquidermes eram daltônicos.

- Hey, Sr. Elefôncio! Estas jujubas são pedras, não está vendo?
- Para mim são jujubas, e muito saborosas!
- São pedras, sua besta! Veja!

Foi aí que o elefante murcho secou de vez. A epifania forçada lhe fez mal. A verdade doía como agulhas debaixo da unha.
Mas num dia de seca, olhou para as pedras e sorrindo as alcançou com a tromba.
O velho ranzinza, aquele epifanista magro e nojento, já gritou de longe:

- E falam da memória do elefante! Já te disse que são pedras! Pedras!
- Não são, são jujubas! - e seguiu comendo. E ainda de boca cheia complementou para o velho:
- Você que sempre viu errado.

E o velho colocou umas pedras na boca e mastigando, perdendo dentes disse:

- E não é que são jujubas mesmo!?

Grito Número Cento e Dezenove:

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

CORAÇÃO VELHO


Meu coração de gesso
Que faz deste tórax um relicário
Peça na gaiola de ossos espessos
Quer trocar qualquer migalha por um pouco de trabalho

Meu coração de gesso
Quer voltar a ter batidas
Quer superar quando o enegreço
Com prostitutas e bebidas

E quando resolvi dar calor ao velho gesso desbotado
Notei que o vivo avermelhado não é mais que o mais suave tom salmão
E quase adormecido, sem notar o ocorrido, o tombei de minha mão

Meu coração dilacerado!
Tentei juntar a poeira e os cacos, porém foi tudo em vão
Meu coração agora é história, nas mãos e na memória de quem já havia o negado de antemão...

Grito Número Cento e Dezoito:

terça-feira, 23 de agosto de 2011

SOBRE OS GAROTOS DOS VERÕES PASSADOS

Uma canção de tempos ancestrais veio cair no meu colo por acaso. Não procurei por ela. Simplesmente vasculhando minhas velhas palavras encontrei seu título perdido pela volta.
Foi então que resolvi escutá-la. E cada acorde, cada palavra, cada batida me lembrou um pouco do antigo Dan, o que esteve aqui antes deste velho eu-lírico das crônicas com o lema "66 anos em 23".
O garoto que trocou os tazos e revistas em quadrinhos pelos discos de rock.
O menino que respirava contracultura, que se vestia estranhamente, usava meias amarelas até os joelhos, moicano em pé ou cabelos compridos, amarelos, azuis, vermelhos, púrpura, rosas e verdes.
O garoto que tinha sede por filosofia, que lia Nietzsche e teorias anarquistas e estava "cagando" para o parnasianismo, para o "lirismo comedido", do "bem comportado" e do "lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho de um vocábulo."
O menino tolo que queria sentar na calçada e não fazer nada até as seis horas da manhã, todos os dias.
O garoto que desenhava crânios e caveiras nos cadernos e carteiras.
O menino que tentou ser crente aos 10, e acho tudo aquilo patético, católico aos 7, e achou patético, bruxo aos 12 e achou patético, satanista aos 14 e sim, achou patético e descobriu que estava acima de tudo isso. Era peça com defeito. Sem encaixe para pinos hipotéticos.
O pequeno homem que achava que mudaria um pedacinho de seu mundo com suas palavras, discursos e seu jeito de agir.
O menino que tão cedo botava fé no jogo do bicho e nunca ganhou. Tomava seus tragos antes de ir para o colégio.
Pichava frases de efeito com tinta vermelha e preta nos muros.
Queria amar alguém intensamente.
Queria gritar intensamente, para que qualquer um pudesse ouvir.
Sonhava alto, baixo e médio.
Ia ao asilo da cidade, por conta própria, e fumava escondido com os idosos.
Não comia legumes, nem frutas.
Era o próprio Holden Caulfield, mas não sabia disso. Tinha os cigarros, o chapéu vermelho, a maleta, o casaco e a dúvida sobre para onde os patos vão quando o lago congela, mas não sabia disso. Tinha vontade de ser apanhador, mas era uma criança perdida no centeio.
E na única vez na vida em que não estava envolvido, no dia em que levaram conhaque para a excursão da escola, ficou com vontade de assumir a culpa, só para encrencar.
Era o garoto que descobriu sozinho o que é ser extremo e viver extremo.
Era o garoto que conseguia acender cigarros no seu próprio inferno pessoal e relaxar entre as chamas e labaredas.
Não fazia sucesso com as meninas, mas as poucas que o olhavam guardaram para sempre alguma coisa.
Achava "tosco" ser normal e sempre sentiu que a normalidade não lhe servia. E tudo o que fez para ser normal era como uma roupa de bebê em um homem muito gordo.
E o tempo passou e passou... e a ânsia pueril adormeceu para sempre.
Mas se da ânsia pueril nada sobrou, convicto estou de que me sobraram os olhos de criança que enxerga um mundo novo a cada segundo, conseguindo admirar formigas fazendo uma fila, folhas secas sobre a grama, um desenho animado dos anos 20 ou um sentimento aparentemente tolo.
Estas são algumas das faces dos garotos que eu fui nos verões passados.
E eu posso te dizer que meu amor por você ainda será forte, depois que os garotos de verão tiverem ido.

(And I can tell you, my love for you will still be strong, after the boys of summer have gone.)



Grito Número Cento e Dezessete:

domingo, 21 de agosto de 2011

SOBRE SORRISOS PLÁSTICOS

Caminhava por algumas
ruazinhas sujas de São Paulo. A garoa fria era potencializada por um vento forte, tão frio que meus dedos doíam. Estava triste e pensativo.
Entrei em um bar de uma dessas ruas, desses onde homens feios e peludos comem torresmos e bebem cachaça, riem de boca cheia e assistem ao canal de esportes. Pedi um cigarro solto, estava amassado e era de uma marca completamente desconhecida. Acendido o veneno, voltei para os pingos ventosos que consumiram o tabaco muito mais rápido do que eu. E volvi também para meu caminhar filosófico.
Pensei na vida, na morte, nos amores, nos corpos, nos seios e nos olhos. E dentro dos olhos, e na inocência, e na clemência que pediria se por ventura meu sangue cético acreditasse em alguma divindade.
A melancolia traz tanto à mente.
Era um domingo de matiz azul marinho, o mais triste entre tempos e tempos.
Foi quando avistei, entre uma poça imunda e a sarjeta, uma cabeça de palhaço, suja de terra e carcomida pelo asfalto, pelo tempo, pelos olhos das crianças que resolveram desprezá-lo para sempre.
Não pude pensar em mais nada e sozinho externalizei:

- A sua piada não tem mais graça, não é mesmo, amigo?

E no seguir dos passos pensei que a vida para palhaços de plástico seja sempre uma velha anedota que não tem mais graça, mas que quando contam temos que esboçar um sorriso falso.

Grito Número Cento e Dezesseis:

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

SOBRE UMA RARIDADE QUE ENCONTREI NA FEIRA DO BIXIGA


As batidas eram os suaves e velozes acordes dos chorinhos paulistanos de domingo de manhã. Meu suor cheirava a café. O sol não castigava minha pele, mas também não era ameno.
Comia um pastel de palmito no Bixiga, próximo a uma conhecida cantina italiana que existe por ali e olhava livros velhos, móveis velhos, brinquedos e pessoas velhas. Senti vontade de comprar alguns cachimbos antigos, ainda que achasse difícil fumar neles, prefiro cigarros, cigarrilhas e charutos, que são fáceis de controlar o começo e o fim do tabaco.
E quando selecionava alguns exemplares da histórica e legendária "O Tico Tico", encontrei meu coração à venda, todo empoeirado e pisoteado por bisontes, como se o tivesse guardado no meio de uma rua de Pamplona em pleno Festival de São Firmino.
Mas o mais triste de tudo isso, que mesmo o olhando com todo carinho e saudade, ele custava caro demais, muito mais do que os tostões que tinha em meus bolsos.

Grito Número Cento e Quinze:

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

SOBRE IRMOS TODOS CIRANDAR

Todo os dias, depois de alguns minutos no metrô, me sento em uma cadeira no curso e começo a estudar. E me transformo em físico, em químico e biólogo. Sou gramático, matemático e até quiroprático, quando massageio minhas próprias costas, no momento em que a posição de leituras e cálculos começa a incomodar a nuca.
Quando me canso dos polígrafos, canetas e equações e preciso tomar um trago de ar, olho a decoração nas paredes daquela sala de estudos. Parte são tabelas periódicas dos elementos e mapas-mundi, porém, próximo a estes existem algumas reproduções de obras de arte, e bem ao lado de "Violino e Guitarra", do cubista espanhol Picasso existe a obra que mais me chama a atenção naquela saleta. Como sou entusiasta e amante das artes, ao olhar para a pintura já me recordei de seu título e de seu autor: "A Dança" de Henri Matisse.
Desde então, sempre finjo que aquele quadro seja uma pequetita janela em que posso fitar o mundo exterior. E pensei, desde a primeira vez que vi aquela janela falsa, que por trás destes ossos cansados que estão lutando para se mover, existe uma esperança maior, pois lá fora o céu sempre estará azul de tinta fresca e as gramíneas verdes como a tal "esperança maior" que acabo de citar.
E por fim, mesmo desnudo e descalço haverá motivo para se dançar ciranda.