Grito Número Cento e Quarenta e Três:

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

SOU UM OPERÁRIO ÀS CEGAS

Quando eu enxergava, gostava das tirinhas do jornal. Ainda me lembro bem dos traços do Calvin e do Minduim, mas dos outros sobrou um grande borrão de nanquim na minha memória. Eu já não posso mais rir dos quadrinhos.
Já não posso mais acompanhar com a vista o rebolado das mulatas moças, das ruivas sardentas e de todas as outras. Me sobrou apenas o perfume para aspirar quando elas passam por mim, mas já nem ligo para os cheiros traiçoeiros.
Também não posso mais curtir o som da música. Com a audição aguçada pela falta de visão, quando não ouço o menor dos desafinos, que já fazem meus ouvidos sangrarem, eu apenas não suporto a batida dos pandeiros ou mesmo a respiração daquele que canta acompanhado do batuque de caixinha.
Do meu antigo trabalho pouco restou. Ainda sinto as marcas da botinada do patrão, que despediu o mais novo inválido do mundo. Me sobrou também o capacete alaranjado que eu usava quando estava no torno. Hoje em dia, o capacete me serve para arrecadar meus trocados na Domingos de Morais. Posso odiar quase todos os sons existentes, mas do barulho das moedas tilintando dentro do meu "elmo de proletário" eu gosto. É mais harmonioso e dá mais esperança que o som de qualquer samba, além de me garantir um prato feito, um cigarro solto e se a "recolha" do dia for boa, me sobra ainda um ou dois tragos de "Fogo Paulista".
Sempre espero que não seja julgado por meus vícios. As pessoas acham que quem passa o chapéu, esperando a comoção dos outros, não pode ter vícios. Quando a pessoa é desse tipo, faço questão de não enxergá-la mesmo. Sou só alguém comum, com erros iguais, com os mesmos medos e com alguns abalos e desventuras a mais no currículo. Sou alguém que leva desvantagem em um dia bonito ou em uma noite estrelada. Dia e noite, não importa, é sempre lua nova para mim.
Estou velho, minha barba branca já diz isso por mim. Eu não sei fazer mais nada além de ser torneiro, mas já devo ter esquecido disso também.
Mas há de se balancear a minha história. Não sou de ficar valendo apenas de choramingos. Sempre desconsidero o melhor e o pior de tudo isso para tentar ser imparcial. O melhor é ficar sentado e ouvir o barulho das moedas de quem eu acredito que tenha vaga lá no paraíso (e não estou falando da estação do metrô). O pior de tudo é não poder olhar essas pessoas nos olhos. Mas tenho na minha cabeça que são olhos brilhantes de criança, como um dia os meus já foram, antes de se tornarem opacos e sem cor alguma.

3 comentários:

mfc disse...

O tempo é mesmo um sacana do pior que conheço!

Anônimo disse...

texto foda, Dan, sem outras palavras.

até.

Monique Burigo Marin disse...

Não abro mão dos meus vícios. Sem eles não sou eu. E me pergunto o que será de mim, se um dia, as jujubas estiverem à venda e as moedas no meu chapéu não puderem comprá-las...
Todos se tornarão opacos algum dia, ainda que por meios diferentes. A morte é o sentido da vida.