Grito Número Cento e Trinta e Dois:

terça-feira, 27 de setembro de 2011


TIGRES SEM DENTES NÃO ME BOTAM MAIS MEDO


Eu já fui um filhote de tigre.
E sempre que fui ronronando buscar o calor do colo tomava mordidas.
E fui perdendo parte dos pelos, ganhando cicatrizes.
Perdi a vista de um dos olhos, tomando patadas.
Acabei deixando de ser tigre, para ser algo mais manso e mais cruel ao mesmo tempo.
E eu nunca esqueci que sou tigre, mesmo devorando das flores e não dos cervos, mesmo não tendo me sobrado mais pelos de tigre, mesmo agora que minha vista de lince foi cegada com farpas.
Sou um tigre que dorme com os corvos que dizem "nunca mais", um tigre que se alimenta de flores do mal.
Um dia, mesmo cheio de cicatrizes e sabendo qual seria a reação, busquei o aconchego mais uma vez. O último suspiro da esperança tola e sonhadora.
E como se eu fosse uma presa, voou com seus dentes pontudos para cima de mim.
Sem pensar, instantaneamente, enfiei-lhe a pata na cara.
Caído ao chão, pisei na sua fuça meia dezena de vezes, até não sobrar nenhum dente em sua boca maldita e nervosa.
Depois desse dia, as mordidas deixaram de doer, e as farpas, como diriam meus amigos corvos, "nunca mais".




Grito Número Cento e Trinta e Um:

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

BELO CARRO ADORMECIDO (OU BRASÍLIA DE ABÓBORA)

Eu não sou um "poeta das ruas". Aliás, ser poeta nada vale para mim. O poeta transpira e constrói com o suor.
Eu apenas vomito e destruo com meu vômito avesso.
Estou escrevendo em um capô de carro abandonado.
Molhei meus fósforos de propósito na poça de chuva que tem no teto amassado.
Acabou para eles.
Talvez esteja tudo acabado para mim também.
Talvez eu esteja escrevendo baboseiras que não servem para nada.
Talvez meu coração seja como este velho carro enferrujado que me serve de escrivaninha.

- Pobre menino rico...

Fiz um desenho na poeira do para-brisa.
Um coração tosco que vai ficar marcado ali até a chuva levar e estragar tudo; que talvez já tenha sido fabricado com defeito.

E todos olham com nojo, com espanto.As vitrines refletem um crânio com roupas.
Como se no meio de uma feira de importados estivesse um carro podre como este, que ninguém quer.
Mas talvez a feira seja de carros populares, novos ou usados, mas sempre populares.
E pela poeira deste daqui, e ferrugem, e pneus murchos, deixou de ser popular há muito tempo.
Mas mesmo feioso e desajeitado, não deixou de ser um belo adormecido.

(...)

Foi no domingo que resolvi ligar para alguém e vomitar toda a angústia. A amiga que me atendeu não sabia que era eu.

Ela disse: "Aparece no visor: NÚMERO RESTRITO...". Isso aparece para todo mundo, não sei mudar essa configuração no telefone.Itálico
Talvez eu não saiba mudar isso em minha própria vida e eu seja restrito para todo mundo. Seja carne, osso, gordura e textos meus.
Li para ela o que tinha escrito até então de "Belo Carro Adormecido". Ela comentou:

- Parece um preâmbulo de algo maravilhoso que ainda não foi escrito.

"ABORTAR MISSÃO, A TURBINA FOI PREJUDICADA.
HOUSTON, WE HAVE A PROBLEM."

(...)

Voltei na segunda feira para olhar o automóvel adormecido, na esperança que me rendesse a tal "coisa maravilhosa" que faltava, porque, diabos, eu vivo disso e por causa isso.
No caminho vi alguns milicos marchando e cantando "Johnny Furacão" e imaginei James Dean atropelando todos eles. Sorri com o canto da boca.
Cheguei e os fósforos haviam sido soprados para fora da poça e estavam secos, provavelmente se acenderiam com a primeira ou segunda tentativa.
Talvez não esteja tudo tão perdido assim.


Cantarolei o verso de uma canção que
conheço bem: "não quero ver mais uma vez essa série em que a gente sangra tanto, meu bem..."
O coração desenhado na poeira estava lá, intacto. E estamos na "terra da garoa". Do lado, um jornal no limpador dizia: "O pesadelo começa na garagem."
Talvez haja esperança.
Talvez seja somente a garagem.
E quando eu beijar esta carcaça apodrecida com o tal do "amor mais puro que existe" e colocar as mãos no volante com paixão, como James Dean, esta abóbora fora do prazo de validade, este resto de feira que nenhum mendigo quis sorver, se transforme no maior possante da história e suma, voando a 300km/h no meio do cosmo, dançando com as estrelas.
E alguém (dos que olharam o crânio com roupas) vai dizer:

- Lá vai o melhor piloto do mundo, na maior máquina que o universo já viu...

Foi assim que eu decolei, em uma Brasilia 1600 feita de abóbora...

Grito Número Cento e Trinta:

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

UM FÓSFORO DE EMMA GOLDMAN

Fiz de anéis os pinos de granadas.
Casamento de pólvora.
Dancemos na noite sem esperar por alvorada.
Ouço de fundo os canhões de glória.
A guerra terminou e varreu os homens valentes e covardes.
Varreu a lua e as estrelas da tarde.
Ah, como te amo, estopim!
Justamente por ser estopim.
Ser o meio entre a ânsia da beleza e os fogos de artifício formando cores leves no céu de aço.
Deixei meus cigarros de lado.
E usei meu último fósforo em ti.
As fagulhas são preâmbulo, o lançamento é o crescendo.
E os fogos coloridos somos nós, trasmutando do largo para o vivace, dançando meio ao caos.
Porque esta não é nossa revolução se não pudermos dançar, não é mesmo?

Grito Número Cento e Vinte e Nove:

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

AVESSO DO AVESSO DO AVESSO DO AVESSO


Final de tarde de um domingo de setembro. Estava quente e não estava programado para tal calor. Agasalhado, suava dentro do metrô. Não gosto de carregar roupas, já havia um livro em minhas mãos e resolvi suar até o final dos trilhos da linha azul. Estava voltando da rodoviária do Tietê, fui designado por familiares para acompanhar uma moça que desconhecia a cidade e precisava pegar um ônibus.
Fui olhar as horas e me dei conta que não havia relógio em meu pulso.

- Será que tirei antes de sair de casa ou será que alguém de mão leve me levou e nem percebi? - falei sozinho.

No vagão, crianças riam alto e brincavam, gargalhavam e agiam de modo escandaloso. Aquilo me irritou e atrapalhou minha leitura.Resolvi mudar de vagão para conseguir ler.
Me chamou atenção um agrupamento de pessoas sentadas em um canto de meu novo vagão. Uma senhora oriental lia um periódico do Seicho-No-Ie, logo ao lado, pai e filha, ambos de cabelos negros e longos sorriam um ao outro e usavam camisetas de heavy metal com desenhos do Demônio (com direito a tridente e tudo mais). Mais atrás, um rapaz transpirava sua homossexualidade no jeans desfiado e no seu tênis com lantejoulas, bem como em seu cabelo de corte moderno e cheio de glamour, acho que cantarolava uma canção da Lady Gaga. Ao lado do rapaz, uma freira albina, de cabelos, cílios e sobrancelhas branquíssimos, olhos vermelhos e pele rosada, segurava em mãos um terço de madeira. No final do agrupamento duas mulheres, aparentemente da vida, cruzavam suas pernas roliças e desnudas e falavam sobre homens de dinheiro (provavelmente deslocavam-se para o trabalho dominical de vender amor para homens tristes).
Quanta diversidade em pouco mais de um metro quadrado, pensei comigo.

Depois pensei:

- Obrigado, São Paulo de todo o mundo, por me dar tanto e pedir tão pouco em troca. Como sou grato, São Paulo, por deixar tão claro que "os novos baianos te podem curtir numa boa".

Grito Número Cento e Vinte e Oito:

domingo, 11 de setembro de 2011

NÃO ME LEIA MAIS, POR FAVOR

Não quero que corra mais os olhos por meu corpo.

Vou fugir das suas vistas e de suas leituras matinais e nas madrugadas.

Não adianta sentar na poltrona macia e acender a luminária.

Não vai adiantar colocar café fresco e quente em sua caneca favorita, como se fosse um ode às coisas que amo.
Como se fosse uma oferenda às boas leituras.

Não quero que passe os olhos no que está escrito em mim, pois meu coração está nas entrelinhas.

E isso você não sabe ler.

Grito Número Cento e Vinte e Sete:

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CARTAS RUSSAS


Elas foram encaminhadas para São Petersburgo, espero que voltem num dia de chuva para esquentar o que o conhaque não conseguirá jamais aquecer.

Grito Número Cento e Vinte e Seis:

terça-feira, 6 de setembro de 2011

UMA REFEIÇÃO PARA UM HENRY CHINASKI (DE PADARIA)

Acordara com a sensação de ter um tijolo no estômago, sua pele estava fria e na testa, gotículas de suor marcavam seu semblante.
Negou seu desjejum, negou até mesmo o café preto bem servido em sua caneca amarelo-cádmio. Seus dedos estavam trêmulos.
Rodou pelo largo Dona Ana Rosa por toda manhã, fumando sem parar, tremendo os dedos sem parar, imaginando mil situações desagradáveis em um ritmo completamente acelerado.
Chegada a hora de retomar a rotina, sentou, sem almoçar, sem qualquer migalha na barriga e recomeçou os trabalhos do dia anterior.
Quando ela chegou e sentou ao seu lado, aquele tijolo coberto de lodo, guardado em sua barriga, sofreu metamorfose em borboletas. E a tremulação dos dedos se espalhou pelas mãos e braços.

- Acredita que não comi nada hoje? - disse.
- Você precisa se alimentar, está corrido o dia hoje, deve estar bem nutrido.

Então olhou suas madeixas negras e brilhantes escorrerem por seu rosto quando soltou seu cabelo.
E seguiu olhando para os seus olhos cor de sombra queimada. Pareciam queimá-lo por dentro.

- Você ouviu o que eu disse? Dia corrido, bem nutrido!
- Acho que nunca estive tão bem nutrido como estou neste momento.

E depois de sorrir, foi trabalhar em suas enormes pilhas de papéis.

Grito Número Cento e Vinte e Cinco:

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

E NEM SOUBERAM DA OPÇÃO DE TER UM FINAL FELIZ...

Fui o primeiro a entrar no carro. Meu trajeto demorava pouco menos de hora e meia de ônibus. Enquanto as pessoas embarcavam do terminal para o comboio, reparava nos tipos que entravam: mulheres religiosas, malandros de bar, mães feias com crianças de colo igualmente feias, até mesmo um policial fardado com um bigode eriçado.
Quando entrou uma moça vistosa, de cabelos longos e dourados, vestindo preto (contrastando com sua pele branca) e portando um decote raso e modesto no busto. Sorri, não por sua beleza ou coisa que o valha, pois eu sorrio para as pessoas que olham para mim por mais de dois segundos. Normalmente quem é reparado ou flagrado reparando, devia o olhar. Pois eu gosto de sorrir, como se estivesse oferecendo algo de valor com meus dentes amarelos de café.
A mocinha se aconchegou no assento a minha frente. Na diagonal sentou um homem de vestes sujas e pele destruída e enrugada de sol, com olhos de cor de águas caribenhas, não se pode dizer se são azuis ou verdes.
O homem ficou fitando o decote da moça e mordia os lábios, virava o corpo e repetia a ação a cada par de minutos. Parecia fingir ser uma estrela do pornô prestes a entrar em cena. Foi aí que comecei a me incomodar com a ação reiterada do indivíduo. A pobre moça, violentada com aqueles olhos claros e febris não havia reparado no que estava acontecendo.
Eu penso que não há mal em reparar e desejar as belas mulheres da metrópole, mas que isso não passe de jogos de olhares respeitosos e desejos internos, sem que caiam na vulgaridade de animais no cio.

E o olhar febril seguia...

Pois quando resolvi me levantar e colocar-me em pé frente a garota, numa atitude heróia e quixotesca de proteger Dulcinéia alheia dos olhos insistentes, um homem gordo, que cantarolava uma música popular de gosto duvidoso, obstruiu a visão do observador maltrapilho e vulgar.
E foi neste dia que Sancho foi herói sem se dar conta. E é assim todos os dias, em São Paulo e Pequim, em Nova Iorque e Paris, em Dublin e Moscou, mulheres são salvas por seus heróis e ambos não percebem e acabam por nunca saber que o adequado é que vivam felizes para sempre.

Grito Número Cento e Vinte e Quatro:

domingo, 4 de setembro de 2011


NÃO EXISTE MAIS SORRISO, NEM EM ESTOQUE, NEM PLÁSTICO

Passei em frente a uma loja de máscaras na Domingos de Morais, esquina com a Praça Dr. Vidigal.
Entrei para admirar as máscaras somente, sem pretenção de comprar nada, até porque não tinha dinheiro para gastar com máscaras num final de mês de agosto.
Depois de alguns minutos, a atendente da loja pergunta:

- Procura algo em específico?
- Quero uma máscara com um sorriso bonito. - respondi.
- Hmmm... sorriso bonito. Não tenho nada assim agora. O que tem está aí pendurado.

Monstros dentuços, bruxas banguelas, múmias, políticos, gatos, galinhas, macacos, caveiras...

- Por que você não leva uma máscara branca e pinta o seu sorriso?
- Eu não sei pintar sorrisos.
- Então leva uma de monstro, vai ficar legal!
- De monstro eu já tenho várias e não tiro nunca. Queria uma que fosse diferente...
- (...) Volta no começo do mês, vou ver se te arranjo um sorriso.
- Migalha eu não quero. - pensei comigo, sem dizer.

Segui pela Domingos de Morais procurando um sorriso de qualquer estranho e fiquei no Largo Ana Rosa, mas só passavam por mim bocas sérias e fechadas...

Grito Número Cento e Vinte e Três:

sábado, 3 de setembro de 2011

E DENTRO DAS SEMENTES... FLOR!


Caminhou por toda América, de ponta a ponta, de costa a costa.
Viu desertos, montanhas e jardins.
E ele sabia que depois de sentir o cheiro das rosas, as sementes seriam apenas sementes.
E de suas verborragias solitárias e monólogos mentais, enquanto caminhava ou corria, só soube falar de flores até o fim de sua vida.
Muito velho se instalou no Atacama e lá passou seus últimos anos.
Lá não havia flores. Lá não havia sementes.
Foi algoz e impiedoso consigo mesmo ao escolher o mais árido dos lares.
E sua alma se foi de seu corpo enfermo e rugoso.
Mas em seus campos elísios encontrou apenas sacas e secas de sementes.

E Hades, jocoso, disse:

- Se quer ver flores, plante.
- Puxa, Seu Hades, não sabia disso! - e sorriu pegando a primeira saca e colocando em sua corcunda.