Grito Número Duzentos e Seis:

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Tratamento Ludovico 

O cheiro podre do ralo
Me faz enlouquecer num momento qualquer
Quem pode ser batendo as onze e quinze?
Hipnose nas curvas de uma mulher

O cheiro das suas costas
Me adormece
Me adoece
Me faz querer parar
Por mil dias
Vale um verso
Para eu poder cantar

Não tenho pressa
Para fugir dos papéis da mesa
Um olhar qualquer me embaça
A vista, por mais que peça
Que não passe essa tristeza
Ela fica e você passa
Passa...

Tudo passa, vira cuspe
Um catarro
Tudo finge, é um palco
Onde está o embaraço?
Tudo é muco do pigarro
Só me resta um cigarro
e você me pede o maço...

Me queime as costas

Uma cinza, duas folhas
Um pedaço de papel
Pinga tinta, sobram bolhas
E endereços de bordel

Pegue a brasa
Me arrasa
Nem sobrou mais nada aqui
Além da sua insensatez
O relógio adiantado
Não estou mais atrasado
Me queime as costas
Me queime o rosto
Por favor, mais uma vez.

Grito Número Duzentos e Cinco:

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Suplício em Silício

Pulula do cerne a questão:
Seria eu de fino vidro, ou não?
Sei que fitas e me enxergas
E isso me faz de carne forte e fraca das pernas.
Mas sinto esse velho peito de puro estilhaço
Resto de caco, desejo e embaraço
Mudo brado loquaz em canção me estilhaça
Queria ser de aço ou estar inserido em couraça
Mas é só um suspiro, um trepidar e a dúvida já me quebra a vidraça.

Grito Número Duzentos e Quatro:

terça-feira, 2 de julho de 2013

DAS GRANDES DECEPÇÕES DA VIDA


Pensava eu que era amor.
E era mesmo.

Grito Número Duzentos e Três:

quarta-feira, 22 de maio de 2013


ANGÚSTIA O QUE CUSTAR

O que o conhaque não cura
O cigarro queima e segura
A zonzura que aperta e apura
Aquilo tudo que me moi.
E para não ficar na tortura
Busco ternura no colo
De uma qualquer criatura
Ao mesmo tempo em que o pequeno diabo de dentro me destroi.
Não é só o amor, viver também doi.

Grito Número Duzentos e Dois:

sexta-feira, 17 de maio de 2013


LEMBRAR DE MIM, TODA VEZ QUE RESPIRAR, LEMBRAR DE MIM, SE EU NUNCA MAIS VOLTAR

É pateticamente óbvio, mas eu já fui um menino. Tentava forjar uma barba cartunesca e tinha pôsteres na parede. Chamava meu quarto de "O Calvário" e queimava mentolados olhando para as estrelas, debruçado na janela.
Hoje, a barba está mais grossa, larguei o tabaco e no quarto, agora chamado apenas de "quarto", não tenho nada na parede que não esteja em uma moldura. A constante "cachaça com soda" da alegria deu lugar ao esporádico conhaque da melancolia. Minha dezena de furos na orelha estão fechados e meu cabelo está curto, com sua cor natural e uma mecha pequenina de fios brancos de lambuja.
Mas ainda olho as estrelas de quando em vez. Ainda suspiro muito, talvez até mais do que antes, e ainda digo "ai, ai", com uma tépida ternura, depois de suspirar, como se eu sentisse todas as dores do mundo e sorrisse para elas, tal e qual velhos amigos de boteco.
Nesse tempo de menino, sonhava em viajar para o futuro, para visitar a mim mesmo e sondar por onde andariam meus passos. Hoje, eu só penso em voltar e me dar um abraço forte.

Grito Número Duzentos e Um:

segunda-feira, 6 de maio de 2013


ESCRITOS ESCROTOS

Dizer "vai tomar no cu" é o mesmo que dizer "eu amo você".
No fundo, bem lá no fundo, você sabe que são somente outras palavras.
Vem daquele lance de se importar, da tênue linha onde o amor se equilibra embriagado de vinho barato.
A diferença é que o "amo você" é dito ou escrito por caras escrotos.
Sou um cara escroto, antes de tudo. E assim é o amor dos caras escrotos. Entre amores e pompons.
E no fundo, é ipsis literis ao amor bandido, muda o layout e a gramatura das palavras.
Quem não gosta, é porque tem cinzeiro de boteco no lugar do coração. Aliás, o problema não é desgostar: é não entender sua existência. E a esses desgostosos com as distintas formas de amor, que recebam todo o meu amor, e enfiem no cu.

Grito Número Duzentos:

terça-feira, 16 de abril de 2013


ELE E UMA NEUTRALIDADE IRRITANTE

Era uma quarta-feira como qualquer outra, o início do verão verdejava os canteiros da cidade e fazia molhar as camisas, dando assunto a todos para conversas de elevador.Até então era isso, verão, calor e ele saiu do escritório para entr
ar no elevador.

-Calorão, hein? - disse o ascensorista.

Ele respondeu arqueando uma das sobrancelhas grossas.
Térreo, campainha e rua. 
Ele trabalhava em um prédio comercial espelhado próximo ao centro. Enquanto afrouxava a gravata estampada em tons espectrais quase neutros, entrou num boteco e sentou-se ao balcão.

-Café, por favor. - as primeiras palavras do dia saíram com esforço de sua boca, finalmente, no final da tarde.

Fumegando, no copo americano, o café foi servido. Tomou em dois goles, parecia sem gosto. Permaneceu passando os dedos no copo e olhando o longe, o perto, os transeuntes trabalhadores e os trabalhadores transeuntes.
Eis que um grupo de colegas de trabalho chegam ali para um happy hour, falando e rindo alto, fazendo piadas sobre times de futebol. Aquilo parecia medíocre aos olhos dele. Rir parecia medíocre aos olhos dele; era como se fosse fácil demais, porém não estava entristecido. Não era triste, nem feliz, em suas veias bombeava aquela neutralidade irritante.

-Você por aqui! Não é de beber! Café? Tem que tomar uma loira gelada com a gente, malandro.

Arqueou a sobrancelha, a mesma que calou o ascensorista, como resposta. Não calou o colega, mas tirou-lhe o sorriso da boca.

- Tá esperando alguém? Aconteceu alguma coisa? - disse o colega curioso e com uma serenidade forçada.
- Não. Estou só esperando algo. - respondeu.
- O quê? - questionou o colega, mais rápido do que pode-se imaginar.
- Estou esperando bater aquela tristeza.
- Pra que isso, cara?
- Para que eu possa esperar ela passar.

Ele levantou-se letargicamente, deixando uma nota de cinco embaixo do copo vazio e saiu do bar para uma longa caminhada, talvez a mais longa, talvez a mais curta de sua vida. Mas isso já não importava.

Grito Número Cento e Noventa e Nove:

quarta-feira, 20 de março de 2013


Grito Número Cento e Noventa e Oito:

domingo, 17 de março de 2013

YOU CAN CALL ME (YOUR) DR. TOM


I wait your calls at midnight
I'm here to prove you're right

I'm here to make you feel like gold
When you're feeling like a dime

I always dream about your smile
Saying me that everything it's fine
Our laugh is ours
Your hapiness is mine
Count on me forever
It's not a question of time
Finish up your drinks and we can say goodbye
Or at least we can try.


Grito Número Cento e Noventa e Sete:

domingo, 24 de fevereiro de 2013

LUGAR CERTO


A gente tenta disfarçar a cara amarrada
Toma providência pra encontrar distração
A gente tenta acomodar o coração
Mas caixa é caixa, almofada é almofada...

Grito Número Cento e Noventa e Seis:

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

ALTEZA INERTE

Apocalipse 3:15, 16 - "Conheço as tuas obras, 
que nem és frio nem quente; oxalá foras frio ou quente! 
Assim, porque és morno, e não és quente nem frio, 
vomitar-te-ei da minha boca."


E a princesa foi lá e fez...
Ela vivia enclausurada entre as masmorras e permanecia em uma alcova-cela não muito grande. Fora presa uns anos antes por um bando de saqueadores, caçadores de recompensa e gente da pior espécie, pessoas que agiam tal e qual Gengis Khan e sua corja. Seu antigo castelo fora dominado por estes homens que mais lembravam trasgos, ogros e criaturas do gênero, sujos e grosseiros.
O grilhão que assegurava que seus pés permaneceriam quietos eram prateados como os seus cabelos e seu quarto era triste e úmido. Havia apenas uma pequetita janela pela qual entrava um feixe de luz matinal que banhava seu semblante pela manhã. 
Pensava nos pássaros e na razão dos homens engaiolarem os mesmos, também pensava constantemente nos passados tempos quando era tão somente uma princesa ansiosa por sustentar uma coroa dourada em seu cocuruto. Pensava no seu pai decapitado e de trono usurpado pelo bando, em sua pobre mãe e rainha, violentada e morta como um cordeiro para oferenda. Fugindo dessas lembranças nefastas e sombrias, passou a sonhar acordada com dias melhores. Tão óbvio quanto em qualquer conto de fadas, sonhava com um príncipe galante que a tiraria daquele lugar e que lutaria com seu sabre afiadíssimo por todos que tentassem impedí-lo.Sonhou tanto que já havia decorado as falas de seu sonho repetido. Sonhou tanto que seu príncipe inerte já não era mais quente, mas não chegava a ser frio: era morno. Um tepidez torpe e enjoada, uma tepidez de causar vômito. 
Quando se viu enjoada de seu sonho pueril e libertador, a princesinha em um ataque de fúria mortal mordeu a corrente que ligava o grilhão de prata à grande pelota de ferro negra e seguiu mordendo até não restar dentes da frente.
Cheia de dor e sangue escorrendo pelos seus lábios delicados, percebeu que seu esforço tivera resultado, seus dentes maceraram um dos elos da corrente. Ainda que o elo macerara seus dentes de volta, estava solta.
Correndo alucinadamente, topou com um guarda e roubou-lhe o sabre em uma manobra ousada. A cabeça rolou pelo assoalho de madeira rústica. E rolaram todas as cabeças possíveis pela lâmina de Vossa Alteza. Ela havia restaurado seu reinado e conseguiu um belo conjunto de dentes de pérola para substituir os que foram perdidos no esforço. Não conseguiu parar de sorrir nunca.
Enquanto esperava sonhadora e sorridente pelo príncipe em inércia, tudo era uma espera, mas quando se propôs a perder os dentes, retomou todo o controle.
Depois de ser feita rainha em cerimônia e ovacionada por sua bravura indomável por seus novos súditos,  devorou carnes flamejantemente quentes e tornou alguns cálices de vinho mais gelados que os topos dos alpes. Pelo morno não valia mais a pena esperar. Tudo que era morno, para Vossa Majestade, era agora intolerável. 

Grito Número Cento e Noventa e Cinco:

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

DIARIAMENTE

Primeiro o direito, depois o sinistro
Abro meus olhos, existo
No início da manhã.
Quando brota uma história
Em minha mente, memória
Já não tão sã

Lembro do barco a partir
Da estrutura a ruir
E de tanto calo no dedo
De quando, sem medo,
Folheio as páginas
Sem fugir, e sem mentir
Esqueço das lágrimas lá
Enquanto as falhas farfalham no mar

Toda manhã poderia não ter o porvir
Mas levanto da cama
Com uma vontade insana
E escolho sorrir

Grito Número Cento e Noventa e Quatro:

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012


DUELO



Tenho de reconhecer minha dupla personalidade. Sou um Dr. Jekyll que pega a linha-1 azul do metrô e que faz fila na lotérica para pagar boleto. E o grande problema dessa duplicidade é quando chega o momento do combate; quando ID e EGO são senhores de suas vontades.
"Não quero ler Sérgio Buarque, vamos deixar a prova de lado! Quero beber conhaque com Bukowski, quero assistir pornografia, quero sair pelas ruas e beber água da chuva" diz um lado. Esse mesmo lado, monstro, urinou no despertador e nunca quer saber de prazos. Quer pintar com aquarela e fazer biscoitos de canela, quer procurar livros nos sebos e andar sem porvir no centro de São Paulo. Aliás, esse lado sempre se perde no centro, de propósito.
Esse mesmo lado, gosta de teatro de fantoches e folhear livros de arte moderna. Esse lado quer caipirinha de saquê no calor, quer conhaque com café nos dias mais gelados. Esse lado quer voltar a andar de skate, quer viajar a Buenos Aires no inverno e só pensa em fazer amor fogoso e boêmio, o amor mais canalha possível, daqueles que puxam a moça pelos cabelos e fazem os cabelinhos do braço se arrepiarem. Esse lado gosta de fumar. Esse lado gosta de falar bobagem, sem corar.
Esse lado não quer tirar a agulha dos discos de chorinho e só quer saber de xique-xique e balacobaco. Esse lado faz aviõezinhos de papel com os trabalhos acadêmicos. Esse lado desenha nas margens dos cadernos em toda e qualquer palestra.
E o grande problema, o maior dos problemas, por incrível que pareça, é o outro lado, aquele quadrado, que nunca quer comprar briga.

Grito Número Cento e Noventa e Três:

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012



IRRESOLÚVEL

Nesta terra que cito, covil dos desgraçados

Existia todo conflito, civil e politizado.
Para que se evaporasse todo o problema
Era simples, sem dilema
Bastava apenas dar as mãos, igual ciranda
O som dos tiros pararia, começaria o som da banda
E viria o fim da dissensão, o silêncio das escopetas
Mas não existe "mão dada" na terra dos manetas

Grito Número Cento e Noventa e Dois:

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

AQUI



Formigueiro de gente entupida nos trens
Pra Vergueiro ou Paulista é só pegar a 23
Eu sou daqui, não sou daqui
Estampado na cara, da Sé a calçada, a mansão no Morumbi... bem aqui.
É sóbria de dia, tão justa, e não para na noite, me entrego à Augusta
Só as luzes já causam total embriaguez
Os Novos Baianos estão velhos, agora é a minha vez.

Grito Número Cento e Noventa e Um:

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LALOFOBIA


NÃO SEI SE CHAMO SEU NOME
OU SE MEU NOME É PAVOR
SE LAMENTO AQUECESSE O PEITO
DOS OLHOS CHORARIA VAPOR
NÃO SEI SE DISCO SEU NÚMERO
OU SE DISCO VOADOR


Grito Número Cento e Noventa:

domingo, 4 de novembro de 2012

SOBRE ABRIR OS OLHOS (OU TIRAR O ESCAFANDRO FORA D'ÁGUA)

                             

Vila Mariana, novembro, um homem pede café em um bar, ele comprou um livro sobre mitologia para ler no metrô.  
Nasce uma criança no interior do Paraná, ela não tem um dos bracinhos, mas desde que nasceu seus olhos brilham.
Em um museu no sul da Itália, uma mariposa pousa em um escafandro que por anos permaneceu esquecido nas profundezas do Adriático.
E em cada centímetro quadrado, em cada pulso firme ou ferido, acontece um universo. A cada segundo, a coisa mais bela do mundo se aflora e passa desapercebida.
Os sacos plásticos dançam, a folhagem do outono grita por nossa atenção, a natureza não é tímida, tampouco a vida urbana.
Não há lentes, pincéis, penas e papéis que bastem, não há porque de não tentar não engolir todo esse mundo de uma vez.
Há quem diga que não existe mágica nos sacos plásticos, nas folhas, nos escafandros enferrujados; que é plástico, cloroplasto, celulose, cobre retorcido, carne e osso e costume.
Para esses só cabe atenção ao que não é ordinário, e acabam por ver nada além da vida passando. 
Possivelmente, nunca um elefante verde que invadirá o bar na Vila Mariana e pedirá um café.
Certamente, não nascerá uma criança com asas, nem no interior do Paraná, nem em lugar algum.
E seria fisicamente impossível um inseto levantar voo e carregar um escafandro até o fim do horizonte.
Há quem ache que é preciso acontecer coisas como estas para quebrar a rítmica da ordinarice. 
Mas, essa é a mágica: não há nada nesse mundo que não seja belo o suficiente, desde que você tenha a capacidade de admirá-lo. Viver e sentir já é mais do que surreal.


Grito Número Cento e Oitenta e Nove:

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

PARÁBOLA

Tenho medo das equações. De primeiro, segundo, de terceiro grau.
Tenho medo das porcentagens, dos gráficos de pizza, de integrar e derivar.
Tenho medo de divisões com dois números na chave e das regras de três.
Tenho receio das frações, a vida já é toda fracionada.
Tenho medo da matemática, tão séria, tão lógica, tão exata, tão diferente de mim.

Grito Número Cento e Oitenta e Oito:

terça-feira, 23 de outubro de 2012

NON OMNIS MORIAR


É poético estar morto quando se está vivo.


Rende.


É poesia estar vivo quando se está morto.
Vale.

Grito Número Cento e Oitenta e Sete:

terça-feira, 16 de outubro de 2012


Grito Número Cento e Oitenta e Seis:

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

ELE E A MANCHA


Passava por ali todos os dias e todos os dias lá estava ela. Já o incomodava diariamente havia quase um ano.

Muitas pessoas prestam suas incomodações ao clima, aos problemas da vida ou do mundo, outros sentem incomodado o peito quando morre um ou outro amor. Ele era incomodado por uma mancha estranha na escadaria da estação.
Uma mancha oleosa e disforme no sétimo degrau.
Os arredores da estação já eram a materialização da decadência humana. Mendigos encardidos e embriagados a dançar ao som dos carros, prostitutas saindo do trabalho pela manhã, catarro de criança de rua, lixo de todo o tipo e mais e mais lixo.
Era religioso passar pelo degrau, olhar a mancha e sentir o mais pungente dos ascos. Não era uma pessoa das mais limpas, em seu apartamento apertado era possível encontrar ocasionalmente uma meia suja na sala de estar, bilhetes vencidos de loteria em pontos não estratégicos pelo chão e copos vazios de conhaque em cada canto. Mas a mancha era cruel e nunca perdoou sua visão ou seus sentidos metafísicos. A mancha era horrível, como tudo que há dentro do lado sombrio de um homem.
Naquela manhã, percebeu ao amarrar seus cadarços antes de sair de casa que não seria uma manhã comum. Andou suas várias estações como sempre, fez a baldeação de sempre e se apertou com as centenas nos mesmos trens de sempre.
Ao virar aos degraus da agonia, olhou para o local onda a mancha permanecia e encontrou um homem deitado desajeitadamente , ocupando a mancha e mais um ou outro par de degraus. Não sentiu pena do infeliz fragrante de bebida e mijo, mas um regozijo não contido bradou em seu peito. Um dia sem manchas.
Ao terminar os degraus, paramédicos passaram por ele e aprontaram-se para acudir o homem. Não quis ficar por lá, junto ao aglomerado de curiosos que se formava, poderiam tirar o homem dali e iria acabar vendo a tal mancha. Foi um dia longo, incólume e feliz.
Passou-se o sol e depois a lua da noite tépida da primavera paulistana. Era um novo dia.
Ele bebericou café e comeu quatro biscoitos de polvilho deixados de lado por uma lasca de broa de milho. Saiu de casa sem passar o cadeado no portão. Comprou o exemplar da revista mensal de modelismo ao passar pela banca. Pigarreou cachimbo. Embarcou e desembarcou.
Chegou ao lugar da mancha e ela não estava mais lá, porém não havia júbilo em sua respiração pesarosa, pois percebeu (ou sempre soube) que havia manchas dentro dele e não há químico ou esfregaço suficiente no mundo.

Grito Número Cento e Oitenta e Cinco:

segunda-feira, 8 de outubro de 2012


Grito Número Cento e Oitenta e Quatro:

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O Cinzeiro Vazio




Toda vez que te encontro é a última vez.
E na próxima, e próxima, e próxima.
É um cigarro que não queima.
Diabos, estou puxando outro e outro do maço vermelho!
Toda vez que te encontro estou pronto para me despedir, mas nunca digo adeus.
Eu apenas puxo outro cigarro, que não queima e não diz nada, como eu.

Grito Número Cento e Oitenta e Três:

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

PARTE DE MIM







Parte de mim
Parte de mim
E as outras partes de mim
Partem-se em mim
Partes em cacos, jogados fora, por partes
Partes partidas, partidas de outrora
Foram parte de mim
Que partindo de mim, resolvi mandar embora
E o que sobra, assim?
E o que sobra no fim?
Uma parte, que não parte e não parte nunca de mim.

Grito Número Cento e Oitenta e Dois:

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

HAIKAI DA MINHA ALMA








o puro café
se esconde atrás das mil notas
e filmes (velhos) e fotos.

Grito Número Cento e Oitenta e Um:

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

PESADO PESAR 


No dia em que apenas sobrou apenas osso e cabelo de seu corpo, antes troncudo e nobre; e as joias da família trocadas em festança, desejou ter escrito um bom livro sobre o amor e outras coisas que nunca julgou bonitas. 

Grito Número Cento e Oitenta:

terça-feira, 7 de agosto de 2012

SOBRE TENTAR AQUECER-SE NA TERRA DA GAROA

Percebo que a garoa escolhe meu rosto, as gotas escorrem pelos fios da barba e os óculos ficam embaçados.
Um frio tímido aparece e com os golpes de vento relapsos acentuam a umidade do corpo, fazendo o frio tomar o corpo.
Sigo caminhando na garoa mansa pelo vale do Anhangabaú, rodeado pelos edifícios que contam histórias e avisto o meu favorito, lá no topo do topo, como um rei que majestosamente observa e zela por seus súditos ao tempo que exibe garboso sua realeza.
Isso é meu, penso. E o lar é onde o coração está, concluí. 
E segui olhando e sorrindo rua acima até um lugar que eu pudesse tomar um café passado, posto naqueles copinhos americanos, servidos nos balcões de pedra, acima de onde penduram sacos de laranja.
Terminado o café, senti amornado o peito, mas, ainda que seja romantismo de minha parte, acredito que não foi o cafezinho do jeito que adoro que deixou tépido meu estado, e sim tudo a volta que aquecera meu coração com a magnitude que somente a Pauliceia injeta aos que se aventuram por seus becos e avenidas.

Grito Número Cento e Setenta e Nove:

segunda-feira, 30 de julho de 2012

GREVE DE FOME É PARA OS SEM APETITE


Estava bêbado e começaram seus devaneios potencializados pelo vermute. Seu olhar alçavam milhas e milhas além do balcão do bar.
Imaginou-se sentado em uma esquina, acorrentado a uma placa de trânsito. Fazia um protesto contra a devastação do planeta. Uma greve de fome.
E passavam por sua volta crianças em formas de coxinhas, padres das paróquias tinham formato de pastéis, mas ainda usavam batina. E quando lhe ofereciam de comer, ou mesmo um gole d'água, gritava: "PELO PLANETA, NÃO!"
Foi quando observava o céu escarlate do entardecer percebeu a presença dos piratas do espaço em discos voadores:

-Pilhem as árvores e os animais que restam! Não deixem sobreviventes!* (*traduzido da língua dos piratas jupterianos)

Como um aspirador de pó, tudo de vida foi sorvido pelas centenas de naves gigantescas, exceto pelos humanos.

-Descarregar bombas! - gritou o Capitão da nave-mãe.

Quando imaginou a explosão devastadora, caiu da banqueta e voltou a si.
Gritou ao balconista:

- Quero um pastel de palmito e dois croquetes daqueles recheados. E um torresmo. E um daqueles ovos cozidos azuis.

O amigo, mais zonzo pelos pedidos que pelos coquetéis perguntou:

-Tanto assim de uma vez só? Vai comer por todo mundo?

-Sim, pode ser que amanhã todos estejam mortos... ou, no mínimo, de barriga vazia. Além disso, eu só sei salvar o mundo de barriga cheia. - respondeu enquanto descascava a casca azul do ovo.

Grito Número Cento e Setenta e Oito:

segunda-feira, 23 de julho de 2012

UM PARÁGRAFO SOBRE A VIDA 
(OU COMPLEXO DE AQUILES)

"Sobre a vida"- Dan Arsky - Acrílica sobre tela -  24x16cm - São Paulo, SP


É sempre antes do maior e mais belo passo da vida de um homem que aparece a mais vil e terrível flechada em seu pé. Somente saltitando em apenas um pé que se alcança as coisas boas nesse mundo, mas se cairmos... é o que se pode dizer dessa vida antes da última flecha.

Grito Número Cento e Setenta e Sete:

segunda-feira, 9 de julho de 2012

CONDUÇÃO






Posso arranjar mais energia
Nesse intrépido dia
Com uma xícara extra de café!
Apertado, sufocado,
Amontoado junto à ralé
Pulo do bonde gritando:
"São só vinte quilômetros,
Eu consigo ir a pé!"

Grito Número Cento e Setenta e Seis:

segunda-feira, 2 de julho de 2012

DORIAN GRAY PERDEU A GRAVATA

Levei meus últimos livros de direito civil, financeiro e criminal para o sebo, troquei por uma edição de Dorian Gray e um lote de histórias em quadrinhos. Aqueles livros me sufocavam mais do que o cheiro de mofo e naftalina naquele sebo. Aquele momento era o marco de abandonar a carreira jurídica em potencial para lidar com livros, arte e aquilo que me injeta ânimo. Já não tinha mais nas mãos a possibilidade de saber sobre as leis e os crimes. Entre os caminhos certos da direita e esquerda, saí voando acima dos rochedos. 

O novo era o velho e o velho novo, de novo.
E quando lembro da sensação, penso que poderia ter matado uma pessoa.... Enrolado o pescoço do filho da mãe com meus dedos e apertado aquele pescoço branco até os olhos pularem para fora das órbitas. Eu poderia ter cometido tal crime e cometi. Estava grávido e abortei um advogado filho da puta. Feto no chão, deformado, vil. Pisei em cima enquanto a coisa rastejava, que, tentando alçar a lombada do Damásio de Jesus, não mais se moveu. 
- Nem esse, nem nenhum Jesus vai te ajudar, filhote de rato!

Trocar esses livros me levou a pensar que, de fato, os livros moldam o caráter daqueles que os leem. Sacrifiquei minha gravata de advogado em troca de ser jovem para sempre, como o jovem Dorian, ainda que custe o nobre retrato que adorna a parede e o ego do dono.

Grito Número Cento e Setenta e Cinco:

sábado, 23 de junho de 2012

SOBRE PIPAS QUE NÃO SOBEM MAIS, APESAR DE FAZER MUITA FORÇA

Estava conversando sobre coisas banais enquanto bebia café na mesma caneca amarela em que bebo todos os dias. Certos objetos seus certamente dizem muito sobre você, talvez uma moto, um troféu de judoca do ano de '79, uma jaqueta, um poncho mexicano ou uma cicatriz. Tenho minha caneca e minha má-vontade e isso já me basta. Olhava para o céu, ridiculamente azul, sem nuvens, sem pássaros, sem nada além de um papagaio de papel com rabiola feita de sacos plásticos pretos. Isso me fez lembrar de uma vez, quando eu era criança, em que meu pai e eu subíamos o morro para empinar uma pipa que encontramos nas galhadas do nosso antigo abacateiro.
Nessa lembrança, eu estava no banco da frente, grávido de expectativa, pés inquietos e perguntei ao meu pai o que era aquilo no piso aos meus pés. Ele disse que deveria ser algum dos livros da minha mãe, que sempre esquecia alguns no carro, na verdade tratava-se de um eufemismo, pois estavam sempre espalhados por todo lado. Com algum esforço alcei o livro com dois dos meus dedos e tentei ler a capa, mas o título estava em alguma língua estrangeira e não entendi nada daquelas letras brancas e garrafais, afinal estava eu recém-alfabetizado em português. Joguei o livro, num ato de puro desdém, para o banco de trás. Como reação desse protótipo de tentativa de delinquência juvenil, veio a punição do destino: joguei o livro em cima do papel de seda e estraguei o papagaio. Quanta ironia em papel estragar papel. Meu pai, frustrado, disse que íamos dar meia volta e tomar o caminho de casa, pois não havia mais concerto. Perdi um dia ventoso de pipa no céu na minha infância, por causa de um livro que não conseguia compreender sequer a capa e, com o tempo, tive muitas outras frustrações, mas tomo essa como a mais sentida, ainda que de menor gravidade.
O mais irônico disso tudo são os valores transvalorados dos meus tempos de moço, adulto-jovem ou de barbado frustrado, como queiram. Hoje brotam papagaios multicoloridos na minha mente, empinados por crianças e velhotes sorridentes, interrompendo a concentração na leitura de livros chatos que não compreendo muito mais do que a capa. O papel segue fazendo estrago no papel, mas os papéis foram invertidos.

Grito Número Cento e Setenta e Quatro:

segunda-feira, 18 de junho de 2012

MEU CORAÇÃO É QUALQUER COISA

Eu poderia dizer que meu coração é algo simples ou incrível.

Existem milhões de metáforas legais que eu poderia usar.

Mas meu coração é só víscera, um punhado de carne.

Eu te amo e ponto final, sem metáfora, simples assim, como o amor deve ser.

Grito Número Cento e Setenta e Três:

quinta-feira, 14 de junho de 2012

DAS DORES, DAS FUGAS




Fingi ter o coração pequeno
Para a que a dor fosse minúscula
Como se fosse só uma gota, uma gota só de veneno
Mas a dor é astuta, sempre é proporcional
Naquele dia sofri dela, tão bruta, com meu coração pequeno
A dor mais colossal.

Grito Número Cento e Setenta e Dois:

terça-feira, 5 de junho de 2012

PINTARAM O PARQUINHO DA MINHA RUA DE COR DE LARANJA

Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado.
Agora as crianças brincam ali depois da aula, esquecendo os cinzas do entorno.
Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado
E todos os tons de cores agora são mais felizes.
Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado,
Mas eu continuei triste.
Porque quando fui construído, fui pintado de cinza por dentro.
E quando tentam jogar tinta para fugir do acinzentado,
A tinta não fica, quando não escorre, descasca.
Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado, mas, ainda assim, tudo continuou cinza para sempre.

Grito Número Cento e Setenta e Um:

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O MISANTROPO (clique na tirinha para ver em tamanho grande)


misantropo |ô| 
(grego misánthropos, -os, -on

adj. s. m.
1. Que ou quem tem aversão aos seres humanos. = ANTROPÓFOBO ≠ FILANTROPO

2. Que ou quem não gosta da convivência social. = ANTROPÓFOBO

3. Que ou quem é melancólico.

Grito Número Cento e Setenta:

quarta-feira, 16 de maio de 2012

DA SOLIDÃO E SEU RITUAL DE EVASÃO


Quando o sono vem, coço as pálpebras e encosto com suavidade minha cabeça no travesseiro, mas não cerro os olhos. Deixo-os tornarem-se pesados sozinhos e os sinto fechar lentamente, sem que eu manifeste minha vontade. Enquanto  as areias do João Pestana não chegam às têmporas, vão voando as ideias na minha mente sempre inquieta. Penso em barcos de papel e desses chego até "O Velho e o Mar", tento entender os leões dos sonhos do protagonista narrados na última página. Penso em ter força, como os leões. Não gosto de carneiros, então nunca faço esse tipo de contagem, apesar da sua dignidade, não serve para dar sono a ninguém.
Na ocasião, era quase três da matina e nada. Peito pesado. Ninguém ao lado no colchão sem lençol até que ela chegou nua e desvirtuosa, caminhando com seus passos mancos e sorriso afetado: a solidão voltou para me fazer companhia. Qualquer idiota sabe que tristeza e insônia não combinam.
Levanto e penso em beber um pouco de café velho da térmica.
Queria mandar essa moça pálida e noturna para longe. E eu conheço muito bem o ritual para fazê-lo: é buscar um canto, colocar conhaque garganta adentro para amansar o peito, que funciona como soda cáustica e um ralo imundo, cheio de cabelo, bagana de cigarro e limo. Um maço de cigarro devorado enquanto olho pela janela e vejo as árvores e escrevo versos brancos na minha cabeça e penso em metáforas escrotas para usar nos meus textos. E depois, tudo passa, tudo volta ao normal, ou pelo menos finjo acreditar que o normal seja a calmaria contínua e não o lapso de tempestade. 
E agora, que me deram quarto sem janela, e é proibido fumar, e nesse quarto existe lei seca e toque de recolher?
Sem o ritual a solidão fica, me joga na cama, faz amor comigo a noite toda, deixa suor no travesseiro encardido. Só vai-se embora quando nasce o sol, mas a filha da puta me abandonou grávido de um feto sem rosto

Grito Número Cento e Sessenta e Nove:

sábado, 12 de maio de 2012

A COR DOS ÓCULOS


É comum nos clássicos do cinema e da literatura a personagem protagonist se perder em uma falsa percepção de realidade. Entre "tijolos amarelos", em "O Mágico de Oz" e universos virtuais, como em "Matrix", a dúvida chega aos de pensamento mais inquieto?
Aristóteles  era pragmático quanto aos seus sentidos, algumas de suas descobertas e análises foram posteriormente invalidados por experimentos mais minusciosos. A realidade aristotélica passou a ser uma falsa percepção da realidade, o que confirma a relatividade das verdades ditas absolutas.
As pessoas e seus diferentes pontos de vista, experiências e crenças acerca de todo o universo! Está aí a razão de tantas escolas filosóficas, de religiões e até mesmo de times de futebol. Incrivelmente, a realidade absoluta é variável com os olhos de quem a observa.  A verdadeira realidade é feita aos nossos olhos, como um curinga em um jogo de cartas, o valor é dado pelo jogador que a tem em mãos. E há um versinho em espanhol, supostamente atribuído a Cervantes, que casa exatamente com esta afirmação: "En este mundo traidor, nada es verdad, ni mentira... todo es según el color del cristal con que se mira".

Grito Número Cento e Sessenta e Oito:

segunda-feira, 30 de abril de 2012

DE PEDRA


Meu coração é daqueles duros, duros feito pedra.

Pois somente assim para conseguir amar em tempos como esse.

Grito Número Cento e Sessenta e Sete:

terça-feira, 24 de abril de 2012

SÓ EXISTE LUA NOVA PARA O QUE NÃO LEVANTA A CABEÇA PARA NADA

Ela era uns poucos pares de anos mais velha do que eu. Sua pele era tão pálida quanto o astro a que fazia referência seu nome.
Mas a pobre Luna não era tão feliz quanto uma noite de luar de céu purpúreo, devido à circunstância dos fatos. Boatos sobre uma libidinosa aventura solitária na sauna do clube renderam-lhe apelidos maldosos de cada jovem malicioso que vivia naquela pequena, pacata e maldita cidadezinha provinciana do interior do Paraná.
Eu tinha por volta de doze anos e ela já era uma moça, quando eu a via passando vexaminada pelos corredores de nosso colégio. Seus lindos olhos negros sempre olhavam para baixo. Eu só a conhecia de vista e de boatos, cada vez maiores.
Um dia eu disse para aqueles olhos tímidos de tão ridicularizados que foram por tanto tempo: - Oi, Luna! - e sorri um sorriso imbecil e inocente. Ela ergueu seus olhos sem dizer nada, me sorriu com o canto da boca e seguiu seu caminho. Vi pequenas estrelas em seu olhar e ouvi as velhas águas passarem por debaixo da ponte sem deixar saudade.
Ela nunca me disse uma só palavra, mas seguiu sempre sorrindo para mim com seu canto tímido, talvez por eu ter usado seu nome uma vez no lugar do apelido infame. 
E quão tolos eram os que não puderam enxergar, ainda que todos seus boatos fossem verdades, como eram inocentes aqueles olhos escuros!


...Ah, eu e minha mania boba de romantizar os personagens da vida real!
  

Grito Número Cento e Sessenta e Seis:

segunda-feira, 16 de abril de 2012

 PARTE DE MIM VIAJA EM UM CASACO XADREZ DE PERFUME ALMISCARADO

Uma linha escrita é um pedaço da gente posto para fora.
Às vezes é um teco que se vai e dói tanto...
Às vezes é um alívio ver o pedaço partindo, escorrendo pelo ralo abaixo.
Algumas vezes é suspiro, algumas vezes é grito.
E por mais estranho que pareça, há uns vários estranhos levando pedaços meus em seus bolsos.

Grito Número Cento e Sessenta e Cinco:

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Ainda que esteja quase morto, absorva as cores. Devore os arredores. Relembre as canções que fizeram seu coração parar, antes que este pare, daquele jeito chato e desbotado.

Grito Número Cento e Sessenta e Quatro:

segunda-feira, 9 de abril de 2012

SOBRE PLANTAR E NÃO COLHER, POIS NEM TODA PLANTA DÁ FRUTOS (OU AQUI SE FAZ E ACABOU)

Não existe recompensa, nem terrena, nem divina, para quem faz uma bondade.
Mas é, como se uma recompensa fosse, recebê-la.
Um pétala sozinha, não vai nunca fazer arder a primavera, mas abre um sorriso de canto de boca da dona da pele que a toca. E se houver maré de flores em breve, que venham os sorrisos.



Mas aquela pétala é inesquecível...





(Quanto mais pessoas aderem à um comportamento ético, 
independente de recompensa e análise de mérito, 
mais fácil fica das ações éticas chegarem a você. 
Isso é além da pétala, isso é também uma semente.)

Grito Número Cento e Sessenta e Três:

segunda-feira, 2 de abril de 2012

SER FORTE

Grito Número Cento e Sessenta e Dois:

quarta-feira, 28 de março de 2012

SOBRE OS SORRISOS PONTUAIS E OS BEIJOS COM BOCA DE HORTELÃ


Cotidiano vai muito além do que rotina. Enquanto esta é apenas um cronograma simplório do que deve ser feito reiteradas e reiteradas vezes, o cotidiano integra as emoções e as vontades destas ações cronogramadas e das pequenas manias pessoais que existem entre dois momentos anotados na agenda da rotina.
Cotidiano é mais do que ir do botão do despertador até a caneca amarela de café, do café até a banca de jornal, da notícia desimportante de meia página ao assento do metrô e do trabalho para o colo de quem se ama no final do dia.
Meu cotidiano envolve analisar a forma que seus olhos tomam enquanto você lê das coisas que não me interessam, e a forma que tomam quando me descobrem flagrando a menina dos seus olhos contraindo com a luz da sala. Está em pensar no livro que quero escrever e nas minhas cartas que foram para o exterior.
Não está na minha rotina a dor que sinto nas minhas costas e que faz apertar o peito, como se eu tivesse perdido um grande amor.
Rotina é fazer riscos no calendário, cotidiano é lembrar que hoje pode ser um dia especial. A rotina é austera, não gosta de mudanças repentinas, sempre é rígida e regida. O cotidiano gosta de novos cheiros e de ser flexuoso, é uma rotina paralela que não pode ser planejada.
Está na minha rotina sentar no Largo Ana Rosa depois que almoço (almoçar também está no cronograma), mas o que eu penso e o que me faz suspirar não pode entrar no quadro das praticas constantes, ainda que constante sejam. Também não pode entrar na rotina o meu olhar para os pombos papudos que se cortejam por lá; a rotina não gosta de olhar para as pequenas coisas da vida.
Meu cotidiano engloba também a forma a qual todos os dias observo o jeito de seu cabelo escorrer pelo rosto. Está na maneira em que mordo meus lábios, contendo o riso, depois das saudações e abraços de "bom dia", na tentativa de sentir gosto do seu cheiro.
A rotina destaca o destino final e o horário em que se deve comparecer,  mas sempre existem diversos caminhos para chegar.
Estes caminhos são o cotidiano, e também todas as paisagens que se pode observar, e todas as esmolas que se dá, e pássaros que se olham, e helicópteros que passam, e cafés de balcão que se tomam, e estranhos para quem sorrimos também.  
E nenhum desses pequenos costumes que integro no meu cotidiano estão embutidos na minha rotina. O cotidiano é sempre o segredo de quem ama (ou de quem pensa demais); o cotidiano é a alma da rotina. E, por aí, andam cotidianos desalmados...

Grito Número Cento e Sessenta e Um:

quarta-feira, 21 de março de 2012

FULANINHO, EX-POETA

Fulano queria ser escritor, desde pequenino inventava suas histórias fantásticas.
Mas o destino o fez advogado, formado em direito em uma universidade tradicional com registro e uma carteirinha da ordem dos advogados com uma foto 3x4 muito bacana.
Frustrado, fazia suas petições ao juiz em forma de poemas e enfeitava as bordas com filigranas coloridos. O juiz, sisudo e sem qualquer sensibilidade artística, sempre indeferia o pedido.
E Fulano, sem clientes, parou de escrever e ficou muito rico. Muito mesmo!
E hoje, conta sua história de superação; a trajetória de menino pobre ao advogado sênior de multinacional. Colecionador de motocicletas Harley-Davidson, piadista de elevador e bebedor de bourbon americano.
Com todos seus ternos italianos e contas bancárias, usava a tal história de vencedor como um disfarce, pois sabia, que com tudo aquilo que tinha, era mais pobre que o menininho que fora um dia.
De alma enegrecida pelos procedimentos, pelas gravatas e pelos nós windsor-largo cotidianos, percebeu-se sufocado tantos e tantos anos depois.
Em um momento de sua vida, quando os primeiros fios brancos sobrepujaram suas madeixas, correu desesperado até seu escritório no último andar e pegou na terceira gaveta um bloco de papel e empunhando sua MontBlanc como se uma adaga fosse, tentou pensar em um verso, que não saiu.
Sua trajetória estava perpetuamente maculada. De menino pobre ao status de grande advogado, de advogado à condição de assassino: o garotinho que sonhava em ser escritor, fora brutalmente assassinado.

Grito Número Cento e Sessenta:

sexta-feira, 16 de março de 2012

DEIXAR DE VIVER


Gosto de vento nos lábios frios
Luz que ofusca a visão e voz que condena
Minha alma que te ama é a mesma que me envenena

Mundo de perfídia e escárnio paralelo
Com o pouco que construo, de labuta me flagelo
Com o suor enxugado pelos calos, acorrentado por liberdade
Tiro de mim o que mais incomoda de verdade

Sem mais olhos em olhares
Nenhum navio no porto
O dia em que deixei de amar
Foi o dia em que me encontrei morto.



   Foto: Dan Arsky

Grito Número Cento e Sessenta:

sexta-feira, 9 de março de 2012

PERSPECTIVA

Percebeu que o mundo, seu mundo, era torto.
Sem delonga, inclinou a cabeça e sorriu.

Grito Número Cento e Cinquenta e Nove:

terça-feira, 6 de março de 2012

CHERNABOG NO ESPELHO DE PRATA


Qual as sombras que protegiam, escuras iguais, havia a sobra da noite fria, do monte calvo e das hostes celestiais.
Embora não fosse o morro que chorasse as noites e as sombras como se vivo, eram as minhas almas, de meu peito.
Eu era o monte Calvo, eu era meu próprio inimigo.


Escute enquanto lê:

Grito Número Cento e Cinquenta e Oito:

quinta-feira, 1 de março de 2012

APENDICITE

Tudo o que nos compõe, obviamente, é parte de nós. Pedaços que, como tijoletas, nos moldam. E como qualquer coisa em meio ao caos, podem, de uma hora para outra, gritar e agir como se possuídas por demônios. 
Tudo que se abafa uma hora pede pra sair.
É a deixa da lâmina que extirpa o pedaço especial.
Mas o pedaço especial nunca fará falta, como o livro bonito na estante, que nunca mais foi lido.
Alguns pedaços, ainda que pareçam importantes, são só apêndices das coisas que importam.