SOBRE PIPAS QUE NÃO SOBEM MAIS, APESAR DE FAZER MUITA FORÇA
Estava conversando sobre coisas banais enquanto bebia café na mesma caneca amarela em que bebo todos os dias. Certos objetos seus certamente dizem muito sobre você, talvez uma moto, um troféu de judoca do ano de '79, uma jaqueta, um poncho mexicano ou uma cicatriz. Tenho minha caneca e minha má-vontade e isso já me basta. Olhava para o céu, ridiculamente azul, sem nuvens, sem pássaros, sem nada além de um papagaio de papel com rabiola feita de sacos plásticos pretos. Isso me fez lembrar de uma vez, quando eu era criança, em que meu pai e eu subíamos o morro para empinar uma pipa que encontramos nas galhadas do nosso antigo abacateiro.
Nessa lembrança, eu estava no banco da frente, grávido de expectativa, pés inquietos e perguntei ao meu pai o que era aquilo no piso aos meus pés. Ele disse que deveria ser algum dos livros da minha mãe, que sempre esquecia alguns no carro, na verdade tratava-se de um eufemismo, pois estavam sempre espalhados por todo lado. Com algum esforço alcei o livro com dois dos meus dedos e tentei ler a capa, mas o título estava em alguma língua estrangeira e não entendi nada daquelas letras brancas e garrafais, afinal estava eu recém-alfabetizado em português. Joguei o livro, num ato de puro desdém, para o banco de trás. Como reação desse protótipo de tentativa de delinquência juvenil, veio a punição do destino: joguei o livro em cima do papel de seda e estraguei o papagaio. Quanta ironia em papel estragar papel. Meu pai, frustrado, disse que íamos dar meia volta e tomar o caminho de casa, pois não havia mais concerto. Perdi um dia ventoso de pipa no céu na minha infância, por causa de um livro que não conseguia compreender sequer a capa e, com o tempo, tive muitas outras frustrações, mas tomo essa como a mais sentida, ainda que de menor gravidade.
O mais irônico disso tudo são os valores transvalorados dos meus tempos de moço, adulto-jovem ou de barbado frustrado, como queiram. Hoje brotam papagaios multicoloridos na minha mente, empinados por crianças e velhotes sorridentes, interrompendo a concentração na leitura de livros chatos que não compreendo muito mais do que a capa. O papel segue fazendo estrago no papel, mas os papéis foram invertidos.
4 comentários:
ótimo texto, querido.
e que bela ironia.
até.
bjo, bjo, bjo...
Se ao menos pudesse compreender aquela língua, poderia – talvez – fazer voar mais do que pipas. Se ao menos quisesse inventar histórias para as páginas cheias de palavras incompreensíveis, poderia – talvez – voar mais longe, mais livre, mais leve.
Papel que estraga papel deve ser o mesmo que embrulha pedra.
Quantos papagaios são estragados durante nossa vida sem ao menos percebermos o quão importante eles poderiam se tornar com o tempo? E quantos mais se perdem por nós sermos infantis o suficiente de não entendê-los quando eles se mostram para nós, brilhantes e multicoloridos?
Adorei a metáfora... muito bom sempre.isso me lembra q eu nunca empinei papagaio, temos q remediar isso uma hora dessas.
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