Grito Número Cento e Oitenta e Seis:

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

ELE E A MANCHA


Passava por ali todos os dias e todos os dias lá estava ela. Já o incomodava diariamente havia quase um ano.

Muitas pessoas prestam suas incomodações ao clima, aos problemas da vida ou do mundo, outros sentem incomodado o peito quando morre um ou outro amor. Ele era incomodado por uma mancha estranha na escadaria da estação.
Uma mancha oleosa e disforme no sétimo degrau.
Os arredores da estação já eram a materialização da decadência humana. Mendigos encardidos e embriagados a dançar ao som dos carros, prostitutas saindo do trabalho pela manhã, catarro de criança de rua, lixo de todo o tipo e mais e mais lixo.
Era religioso passar pelo degrau, olhar a mancha e sentir o mais pungente dos ascos. Não era uma pessoa das mais limpas, em seu apartamento apertado era possível encontrar ocasionalmente uma meia suja na sala de estar, bilhetes vencidos de loteria em pontos não estratégicos pelo chão e copos vazios de conhaque em cada canto. Mas a mancha era cruel e nunca perdoou sua visão ou seus sentidos metafísicos. A mancha era horrível, como tudo que há dentro do lado sombrio de um homem.
Naquela manhã, percebeu ao amarrar seus cadarços antes de sair de casa que não seria uma manhã comum. Andou suas várias estações como sempre, fez a baldeação de sempre e se apertou com as centenas nos mesmos trens de sempre.
Ao virar aos degraus da agonia, olhou para o local onda a mancha permanecia e encontrou um homem deitado desajeitadamente , ocupando a mancha e mais um ou outro par de degraus. Não sentiu pena do infeliz fragrante de bebida e mijo, mas um regozijo não contido bradou em seu peito. Um dia sem manchas.
Ao terminar os degraus, paramédicos passaram por ele e aprontaram-se para acudir o homem. Não quis ficar por lá, junto ao aglomerado de curiosos que se formava, poderiam tirar o homem dali e iria acabar vendo a tal mancha. Foi um dia longo, incólume e feliz.
Passou-se o sol e depois a lua da noite tépida da primavera paulistana. Era um novo dia.
Ele bebericou café e comeu quatro biscoitos de polvilho deixados de lado por uma lasca de broa de milho. Saiu de casa sem passar o cadeado no portão. Comprou o exemplar da revista mensal de modelismo ao passar pela banca. Pigarreou cachimbo. Embarcou e desembarcou.
Chegou ao lugar da mancha e ela não estava mais lá, porém não havia júbilo em sua respiração pesarosa, pois percebeu (ou sempre soube) que havia manchas dentro dele e não há químico ou esfregaço suficiente no mundo.

4 comentários:

Monique Burigo Marin disse...

Algumas manchas são tão grandes que passam despercebidas, tomam conta de nós. Como as ataduras de uma múmia.

Unknown disse...

Muito bom como sempre, Dan. Vc é um cronista do surrr, com a cara de São Paulo.
Eu que sou cheia dos TOCs, super me identifiquei..

Letícia Helena Prochnow disse...

Muito bom, comecei a ler o Blog agora e achei super interessante.

l4kuti disse...

Ótimo! Não é atoa que considero o seu blog um dos melhores que já conheci e faço questão de visitá-lo sempre que posso. É fabuloso. É envolvente. Parabéns.