BELO CARRO ADORMECIDO (OU BRASÍLIA DE ABÓBORA)
Eu não sou um "poeta das ruas". Aliás, ser poeta nada vale para mim. O poeta transpira e constrói com o suor.
Eu apenas vomito e destruo com meu vômito avesso.
Estou escrevendo em um capô de carro abandonado.
Molhei meus fósforos de propósito na poça de chuva que tem no teto amassado.
Acabou para eles.
Talvez esteja tudo acabado para mim também.
Talvez eu esteja escrevendo baboseiras que não servem para nada.
Talvez meu coração seja como este velho carro enferrujado que me serve de escrivaninha.
- Pobre menino rico...
Fiz um desenho na poeira do para-brisa.
Um coração tosco que vai ficar marcado ali até a chuva levar e estragar tudo; que talvez já tenha sido fabricado com defeito.
E todos olham com nojo, com espanto.As vitrines refletem um crânio com roupas.
Como se no meio de uma feira de importados estivesse um carro podre como este, que ninguém quer.
Mas talvez a feira seja de carros populares, novos ou usados, mas sempre populares.
E pela poeira deste daqui, e ferrugem, e pneus murchos, deixou de ser popular há muito tempo.
Mas mesmo feioso e desajeitado, não deixou de ser um belo adormecido.
(...)
Foi no domingo que resolvi ligar para alguém e vomitar toda a angústia. A amiga que me atendeu não sabia que era eu.
Ela disse: "Aparece no visor: NÚMERO RESTRITO...". Isso aparece para todo mundo, não sei mudar essa configuração no telefone.
Talvez eu não saiba mudar isso em minha própria vida e eu seja restrito para todo mundo. Seja carne, osso, gordura e textos meus.
Li para ela o que tinha escrito até então de "Belo Carro Adormecido". Ela comentou:
- Parece um preâmbulo de algo maravilhoso que ainda não foi escrito.
"ABORTAR MISSÃO, A TURBINA FOI PREJUDICADA.
HOUSTON, WE HAVE A PROBLEM."
(...)
Voltei na segunda feira para olhar o automóvel adormecido, na esperança que me rendesse a tal "coisa maravilhosa" que faltava, porque, diabos, eu vivo disso e por causa isso.
No caminho vi alguns milicos marchando e cantando "Johnny Furacão" e imaginei James Dean atropelando todos eles. Sorri com o canto da boca.
Cheguei e os fósforos haviam sido soprados para fora da poça e estavam secos, provavelmente se acenderiam com a primeira ou segunda tentativa.
Talvez não esteja tudo tão perdido assim.
Cantarolei o verso de uma canção que
conheço bem: "não quero ver mais uma vez essa série em que a gente sangra tanto, meu bem..."
O coração desenhado na poeira estava lá, intacto. E estamos na "terra da garoa". Do lado, um jornal no limpador dizia: "O pesadelo começa na garagem."
Talvez haja esperança.
Talvez seja somente a garagem.
E quando eu beijar esta carcaça apodrecida com o tal do "amor mais puro que existe" e colocar as mãos no volante com paixão, como James Dean, esta abóbora fora do prazo de validade, este resto de feira que nenhum mendigo quis sorver, se transforme no maior possante da história e suma, voando a 300km/h no meio do cosmo, dançando com as estrelas.
E alguém (dos que olharam o crânio com roupas) vai dizer:
- Lá vai o melhor piloto do mundo, na maior máquina que o universo já viu...
Foi assim que eu decolei, em uma Brasilia 1600 feita de abóbora...