Grito Número Cento e Setenta e Cinco:

sábado, 23 de junho de 2012

SOBRE PIPAS QUE NÃO SOBEM MAIS, APESAR DE FAZER MUITA FORÇA

Estava conversando sobre coisas banais enquanto bebia café na mesma caneca amarela em que bebo todos os dias. Certos objetos seus certamente dizem muito sobre você, talvez uma moto, um troféu de judoca do ano de '79, uma jaqueta, um poncho mexicano ou uma cicatriz. Tenho minha caneca e minha má-vontade e isso já me basta. Olhava para o céu, ridiculamente azul, sem nuvens, sem pássaros, sem nada além de um papagaio de papel com rabiola feita de sacos plásticos pretos. Isso me fez lembrar de uma vez, quando eu era criança, em que meu pai e eu subíamos o morro para empinar uma pipa que encontramos nas galhadas do nosso antigo abacateiro.
Nessa lembrança, eu estava no banco da frente, grávido de expectativa, pés inquietos e perguntei ao meu pai o que era aquilo no piso aos meus pés. Ele disse que deveria ser algum dos livros da minha mãe, que sempre esquecia alguns no carro, na verdade tratava-se de um eufemismo, pois estavam sempre espalhados por todo lado. Com algum esforço alcei o livro com dois dos meus dedos e tentei ler a capa, mas o título estava em alguma língua estrangeira e não entendi nada daquelas letras brancas e garrafais, afinal estava eu recém-alfabetizado em português. Joguei o livro, num ato de puro desdém, para o banco de trás. Como reação desse protótipo de tentativa de delinquência juvenil, veio a punição do destino: joguei o livro em cima do papel de seda e estraguei o papagaio. Quanta ironia em papel estragar papel. Meu pai, frustrado, disse que íamos dar meia volta e tomar o caminho de casa, pois não havia mais concerto. Perdi um dia ventoso de pipa no céu na minha infância, por causa de um livro que não conseguia compreender sequer a capa e, com o tempo, tive muitas outras frustrações, mas tomo essa como a mais sentida, ainda que de menor gravidade.
O mais irônico disso tudo são os valores transvalorados dos meus tempos de moço, adulto-jovem ou de barbado frustrado, como queiram. Hoje brotam papagaios multicoloridos na minha mente, empinados por crianças e velhotes sorridentes, interrompendo a concentração na leitura de livros chatos que não compreendo muito mais do que a capa. O papel segue fazendo estrago no papel, mas os papéis foram invertidos.

Grito Número Cento e Setenta e Quatro:

segunda-feira, 18 de junho de 2012

MEU CORAÇÃO É QUALQUER COISA

Eu poderia dizer que meu coração é algo simples ou incrível.

Existem milhões de metáforas legais que eu poderia usar.

Mas meu coração é só víscera, um punhado de carne.

Eu te amo e ponto final, sem metáfora, simples assim, como o amor deve ser.

Grito Número Cento e Setenta e Três:

quinta-feira, 14 de junho de 2012

DAS DORES, DAS FUGAS




Fingi ter o coração pequeno
Para a que a dor fosse minúscula
Como se fosse só uma gota, uma gota só de veneno
Mas a dor é astuta, sempre é proporcional
Naquele dia sofri dela, tão bruta, com meu coração pequeno
A dor mais colossal.

Grito Número Cento e Setenta e Dois:

terça-feira, 5 de junho de 2012

PINTARAM O PARQUINHO DA MINHA RUA DE COR DE LARANJA

Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado.
Agora as crianças brincam ali depois da aula, esquecendo os cinzas do entorno.
Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado
E todos os tons de cores agora são mais felizes.
Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado,
Mas eu continuei triste.
Porque quando fui construído, fui pintado de cinza por dentro.
E quando tentam jogar tinta para fugir do acinzentado,
A tinta não fica, quando não escorre, descasca.
Pintaram o parquinho da minha rua de laranjado, mas, ainda assim, tudo continuou cinza para sempre.