Grito Número Cento e Quarenta e Quatro:
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
O RÁDIO MONSTRO
Era uma radiola simples, não tocava fitas ou discos. Seus botões e painéis sugeriam um rosto robótico assustador aos olhos de algumas crianças. A menina sabia; o preâmbulo das cenas tristes, histéricas e deprimentes de sua vida eram dadas pelo ligar daquele tal rádio. O volume alto que chegava aos seus ouvidos fazia seu coração fibrilar e suas mãos tremerem.
Como qualquer pessoa normal, não gostava de brigas, ofensas gratuitas ou violência desmedida. Mas se o rádio maldito estivesse com seus transistores tinindo e fazendo a transmissão, era certo o destino do que seria recebido.
O morador insano sintonizava a AM: brigas sobre o que vai ser dos próximos dias ou como o gatinho que a menina carregava sempre em seu colo era asquerosa (o que era uma grande mentira). E voavam copos, vasos de flores e palavras pontiagudas. A reação da mistura das canções do rádio e das discussões sempre eram lágrimas, impreterivelmente. E sempre somente lágrimas da pequetita. O homem louco de bigode pontudo e olhos sem cor definida seguia a programação de uma rádio pirata em FM: o que gerava agressões físicas e degradações morais sem sentido.
Cansada de tantas farpas, a menina resolveu valer-se de toda sua sagacidade. Inverteu o circuito, mexeu nos transistores, entortou a antena para lá, para cá e para todas as outras direções depois disso, arrancou algumas peças e substitui por algumas partes específicas de sua boneca. Fez o trabalho de um Dr. Frankenstein do mundo sintético.
Era pouco mais de seis da manhã quando os dois homens de bigode subiam a escadaria discutindo se era hora de ouvir AM ou FM. E farfalhavam sobre o que era melhor, discutiam sobre as cantoras do rádio, sobre qual o melhor noticiário entre outras trivialidades.
Se aproximaram do aparelho de som e o puseram na tomada. A menina tapou os ouvidos e riu um sorriso afetado lá de longe. Um deles já girava o botão de sintonia antes mesmo do outro alcançar o plugue da tomada e ligar aquela radiola maldita.
Plugue na tomada, luzinha vermelha do stand-by, botão ON para cima, faísca, fumaça, curto circuito, explosão.
O rádio se partira em uma dúzia e meia de pedaços pelo chão. Os homens ajoelharam-se e recolheram os pedaços como se recolhessem partes de uma criança que pisara em uma mina terrestre. Um deles trouxe um saco pardo e vazio de pão e o fez de saco de lixo para os restos mortais do que um dia foi um eletrodoméstico. Jogaram o lixo no lixo.
Sentaram-se em suas cadeiras de vime como de costume, mas em pleno som do silêncio. Um deles abriu o jornal o outro acendeu o cachimbo cor de madeira cor de marfim. Ambos olharam para a menininha sorrindo suavemente por detrás de seus bigodes. Eis que um deles, entre goles de chá de anis-estrelado, diz para a menina:
-Que vestido adorável está usando, garotinha. Te faz mais linda.
-Tens razão. Combina com esses grandes e brilhantes olhos negros. - disse o homem mais velho.
A menina sorriu, e seguiu sorrindo até ser moça.
Não existia mais o som de rádio naquela casa modesta e ninguém mais fazia questão, o som da paz parecia ser um melhor motivo para dançar.
Postado por Dan Arsky Lombardi às 22:30 3 comentários
Grito Número Cento e Quarenta e Três:
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
SOU UM OPERÁRIO ÀS CEGAS
Quando eu enxergava, gostava das tirinhas do jornal. Ainda me lembro bem dos traços do Calvin e do Minduim, mas dos outros sobrou um grande borrão de nanquim na minha memória. Eu já não posso mais rir dos quadrinhos.
Já não posso mais acompanhar com a vista o rebolado das mulatas moças, das ruivas sardentas e de todas as outras. Me sobrou apenas o perfume para aspirar quando elas passam por mim, mas já nem ligo para os cheiros traiçoeiros.
Também não posso mais curtir o som da música. Com a audição aguçada pela falta de visão, quando não ouço o menor dos desafinos, que já fazem meus ouvidos sangrarem, eu apenas não suporto a batida dos pandeiros ou mesmo a respiração daquele que canta acompanhado do batuque de caixinha.
Do meu antigo trabalho pouco restou. Ainda sinto as marcas da botinada do patrão, que despediu o mais novo inválido do mundo. Me sobrou também o capacete alaranjado que eu usava quando estava no torno. Hoje em dia, o capacete me serve para arrecadar meus trocados na Domingos de Morais. Posso odiar quase todos os sons existentes, mas do barulho das moedas tilintando dentro do meu "elmo de proletário" eu gosto. É mais harmonioso e dá mais esperança que o som de qualquer samba, além de me garantir um prato feito, um cigarro solto e se a "recolha" do dia for boa, me sobra ainda um ou dois tragos de "Fogo Paulista".
Sempre espero que não seja julgado por meus vícios. As pessoas acham que quem passa o chapéu, esperando a comoção dos outros, não pode ter vícios. Quando a pessoa é desse tipo, faço questão de não enxergá-la mesmo. Sou só alguém comum, com erros iguais, com os mesmos medos e com alguns abalos e desventuras a mais no currículo. Sou alguém que leva desvantagem em um dia bonito ou em uma noite estrelada. Dia e noite, não importa, é sempre lua nova para mim.
Estou velho, minha barba branca já diz isso por mim. Eu não sei fazer mais nada além de ser torneiro, mas já devo ter esquecido disso também.
Mas há de se balancear a minha história. Não sou de ficar valendo apenas de choramingos. Sempre desconsidero o melhor e o pior de tudo isso para tentar ser imparcial. O melhor é ficar sentado e ouvir o barulho das moedas de quem eu acredito que tenha vaga lá no paraíso (e não estou falando da estação do metrô). O pior de tudo é não poder olhar essas pessoas nos olhos. Mas tenho na minha cabeça que são olhos brilhantes de criança, como um dia os meus já foram, antes de se tornarem opacos e sem cor alguma.
Postado por Dan Arsky Lombardi às 10:35 3 comentários
Grito Número Cento e Quarenta e Dois:
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
O MELHOR E PIOR SURDO (OU O MELHOR DANÇARINO DA MINHA RUA)
Escuto músicas cujas letras dizem muito sobre sua pessoa, enquanto degusto um conhaque de segunda categoria.
Penso, suspiro, suponho, escrevo.
O conhaque é a bebida oficial da solitude.
Me imagino em uma valsa, mas eu não sei dançar nem isso. Não tenho ritmo, muito menos coordenação motora suficiente.
Sempre tropeço no meio-fio e nos desníveis das calçadas. Algumas vezes, tenho a proeza de tropeçar nos meus próprios pés.
Acendo um cigarro mentolado e o fumo jogando fumaça janela afora. Desta vez elas não formam desenhos, venta forte pelo corredor de prédios. A noite é fria.
Se existe um lugar que foi projetado para a melancolia ter estadia é este parapeito de janela.
Eu aprecio a vista da minha rua úmida, mal-iluminada e vazia e faço analogias óbvias e outras sem sentido fora da minha cabeça.
Apenas quero que exista uma canção sua com meu nome, na verdade, eu não quero nem ouvi-la. Ouvi-la me faria mudar de rumo.
Quero apenas que ela exista e seja a sua canção secreta. Aquela que está sempre fora do repertório. Aquela que nunca foi tocada depois de composta.
Quero que ela tenha poucos acordes, dos mais vagabundos e mal trabalhados.
Que a faça vomitar as borboletas que podem existir em sua barriga.
Que a faça voar.
Quero que essa música apenas exista, para que eu posso supor a sua letra, supor o lirismo em potencial, pois não me importo com o que pode ser ou com o que poderia ter sido.
Eu só me importo em sonhar.
E enquanto eu sonho, eu danço. Danço na rua úmida que é só minha.
Postado por Dan Arsky Lombardi às 09:08 3 comentários
Grito Número Cento e Quarenta e Um:
terça-feira, 22 de novembro de 2011
O AMOR MAIS PURO QUE EXISTE
Existe na flor murcha com bom perfume.
Está no brilho do inseto que é o vaga-lume.
Está no beijo da moça em seu padrinho morto.
Existe no sentimento da criança pelo homem torto.
Está nos galhos de inverno que não sustentam flor.
Existe no maquinário enferrujado que solta nuvens de vapor.
Existe no luar da lua nova que não ilumina.
Está no delírio colorido de uma febre repentina.
Quarenta graus, quarenta-e-um. E as cores aumentam...
Existe na timidez do olhar desajeitado.
Está na tentativa de dança do esmoleiro aleijado.
Existe no riso contido do menino favelado.
Está na mão levada à boca do palavrão que escapoliu.
Está no remédio amargo que, no final das contas, cura.
Existe em achar que ama, não dizer e fingir que é tortura.
Está na tristeza que surge justamente na noite mais escura.
Existe na auto-ironia do monógolo do mal-amado.
Está nas vielas sujas e nos tapetes vermelhos.
Existe nas prostitutas dos becos e nas freiras de joelhos.
Está no torpe e vil e também no canonizado.
E viverá eternamente no sorriso franco dos desdentados.
Postado por Dan Arsky Lombardi às 21:05 3 comentários
Grito Número Cento e Quarenta:
terça-feira, 8 de novembro de 2011
MEMENTO MORI
É fato sabido que todas as pessoas tem problemas a serem superados. Um dos mais edificantes para elas é vencer uma morte iminente, ainda que o caminho mais suave seja morrer. Porém, existem problemas em todas as facetas da vida humana, na social, acadêmica ou amorosa. Viver é transpor as barreiras impostas pela vida. O suor da vida tem gosto adocicado.
Não é raro sabermos de uma história de um personagem da mundo real que superou grandes limites; uma doença, uma perda familiar ou uma árdua escalada até a conquista de um curso superior. Estas histórias cativam e inspiram muitos, principalmente os portadores de problemas semelhantes.
A vida balbucia entre o prazer e a dor, entre momentos de plumas e lâminas. Estes dois polos de sensasões são inerentes aos próprios caminhos da vida. Há séculos a filosofia estuda a necessidade do homem de buscar prazer e fugir da dor. Há quem diga que o martírio é o caminho do triunfo e que o mesmo dá mais sabor aos momentos posteriores de glória.
A máxima latina "memento mori" significa "lembre-te, homem, que um dia irá morrer". Um homem só inicia sua vida no dia em que descobre que ela logo mais terá fim. Aquele que quer se sentir vivo deve recordar desse lema dia após dia e com isso tomar o fôlego para vencer e superar os fracassos e entender, na mais bela epifania, que mesmo sendo sinuoso, oscilando entre a dor e o prazer, o melhor desta vida é viver.
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"Tyler Durden: Escute aqui! Você tem que considerar a possibilidade de que Deus não gosta de você. Ele nunca te quis. Que provavelmente, Ele te odeia. Isso não é o pior que pode acontecer.
Narrador: Não é?
(...)
Tyler Durden: Dane-se a condenação, cara! Dane-se a redenção! Nós somos os filhos indesejados de Deus? Então que seja!
Narrador: OK. Me dá um pouco de água!
Tyler Durden: Escuta, você pode passar água na sua mão e fazer a queimadura piorar ou...
Narrador: [grita]
Tyler Durden: Olhe para mim... ou você pode usar vinagre e neutralizar a quimadura.
Narrador: Por favor, me dê... Por favor!
Tyler Durden: Primeiro você tem que se render, primeiro você tem que SABER... não temer... SABER... que um dia você vai morrer."
Diálogo da Queimadura Química - Clube da Luta
Postado por Dan Arsky Lombardi às 21:32 4 comentários
Grito Número Cento e Trinta e Nove:
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
SOBRE DITADORES MORTOS, MISSÕES TERRORISTAS IMAGINÁRIAS E POMBAS MORIBUNDAS
Pela manhã, enchi minha caneca amarela de café e fiquei observando (pela enésima vez) a fumaça fazer formas divertidas.
Antes mesmo de abrir o jornal, li a manchete. A primavera árabe tinha vencido. Kadafi estava morto. E eu sabia o quanto o povo da Líbia tinha a comemorar. Eu mesmo estaria dançando a morte do símbolo de mais de quarenta anos de ditadura e opressão.
Comecei então a pensar em me tornar um assassino político. Um Guy Fawkes tupiniquim que viajaria até Brasília, detonaria toda a obra do Niemeyer e faria um espetáculo de pólvora e tortura com cada símbolo de corrupção, sujeira e sacanagem que habita o planalto central. Assassinei mentalmente vários políticos que me irritam por simbolizar toda a corja de bandidos que dão destino a esse país.
Até me imaginei sendo preso e dando depoimento para o Jornal Nacional, com aquela cara de fanático atormentado: “O povo brasileiro sabe que sou um herói, um herói do povo!”. Pensei que teria realmente coragem de tirar a vida de um fascista nojento que compra o voto dos mais pobres e ignorantes.
Um tempo depois, estava próximo da Avenida Paulista e resolvi parar em um boteco de segunda categoria para um belisco entre o desjejum e o almoço. Pedi dois ovos cozidos coloridos, um azul e um rosa. Se você é um paulistano e não comeu nunca em sua vida um ovo colorido, não é um paulistano genuíno. Se você não é paulistano, mas já comeu um ovo colorido numa bodega duvidosa em São Paulo, é praticamente um paulistano. O mesmo serve para churrasquinho grego e aqueles torresmos peludos. Vale também para quem tornou tomar café da manhã na padaria um hábito.
Quando saí do botequim, vi uma pomba encostada no canto de uma livraria, que eu pretendia entrar, mas ainda estava fechada. A pomba era toda preta, não fosse o seu formato tão característico, seria um corvo. Ela se equilibrava em uma das patas e encolhia a cabeça para dentro do corpo. Não voava, mesmo se sentindo ameaçada pelos transeuntes. Suas penas estavam opacas e seus olhos piscavam devagar.
Eu sabia (e não era preciso ser um veterinário ou um cientista para notar) que o bicho estava para morrer.
Meu coração se encheu de tristeza ao ver a decadência de um dos animais mais decadentes de todo o reino animália. De símbolo do espírito santo para rato de asas. E aquele pombo em específico, de rato de asas para rato moribundo.
Tentei me convencer de que não deveria ter pena de um animal que é uma praga nos grandes centros urbanos e que é vetor de uma infinita gama de doenças. Mas a decadência da decadência sempre amorna o meu peito. Eu tenho afinidade com o fundo do poço.
Cheguei a conclusão de que não teria coragem de ser o assassino da minha missão imaginária “Fawkes Tupiniquim”, que eu tinha arquitetado pela manhã, pelo simples fato de que eu tinha respeito aé pela vida dos ratos de asas dos centros das cidades. Mas depois concluí que os pombos não são tão asquerosos como os detestáveis de Brasília.
No final, senti que seria incapaz de tirar uma vida, ainda que dos grandiosos filhos da puta que estão no comando. Me senti um inútil por um segundo, mas percebi que a maneira que eu tenho para lutar é minha tentativa de tirar doçura de um cenário cuja protagonista é uma pomba moribunda.
Postado por Dan Arsky Lombardi às 22:47 2 comentários
Grito Número Cento e Trinta e Oito:
terça-feira, 1 de novembro de 2011
SOBRE O RÍMEL VALER COMO MOLDURA
A conheci nos últimos meses. Sempre me destacou a maquiagem levemente borrada que cercavam seus cílios compridos. Acho que ela chorava escondido sempre. Já a vi chorando uma vez, era de cortar o coração. Aquela maquiagem borrada era como a moldura do lindo quadro que eram seus grandes olhos escuros.
Sempre me sorria um sorriso juvenil e simpático. Trocávamos pouco mais que cumprimentos formais.
Um dia fiz uma pequena caricatura no canto de minha caderneta e entreguei para ela.
- Sou eu? - ela me pergunta rindo.
- Sim. Os olhos não correspondem, parece que no desenho você está hipnotizando alguém. Mas no geral, está parecido. - respondi.
- Está muito legal. - disse sorrindo seu sincero sorriso espontâneo.
Outro dia, enquanto ela contava as cédulas de dinheiro, me mostrou que guardara o meu rabisco em sua carteira. Para mim, aquilo tinha mais valor do que se eu expusesse grandes telas nas pinacotecas mais badaladas de São Paulo.
Em um certo momento, estava assistindo a um documentário sobre imagens, cenários e composição cinematográfica e comecei a rabiscar um bloco de papel reciclado enquanto assistia. Eu estou sempre rabiscando alguma coisa. E percebi que o pedaço de semblante que eu havia desenhado, do lado de outros desenhos irrelevantes, era muito semelhante ao dela. Eram os olhos dela, os olhos que não estavam compatíveis com a caricatura de canto de caderno que eu havia feito.
E o que narrei agora não foi fruto de uma paixão pueril, de um amor de perdição ou de atração sexual por uma mulher, foi apenas uma epifania trazida à tona por um par de olhos escuros e brilhantes.
O que me rendeu observar esse par de olhos e desenhá-los depois foi descobrir que enquanto muitos pensam em mudar o mundo cortando cabeças de ditadores, jogando molotovs flamejantes nas embaixadas, fazendo poemas-protesto contra o parnasianismo ou votando nulo nas eleições presidenciais, esta mocinha mudava o mundo simplesmente passando sua vista por sobre as pessoas.
Postado por Dan Arsky Lombardi às 09:25 3 comentários
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