Grito Número Cento e Trinta e Sete:

domingo, 30 de outubro de 2011

MEMÓRIA DO AMADEU

Meu tio Amadeu era dono de um pequeno sebo numa travessa da Teodoro Sampaio. Me lembro de sua imagem sentado entre os livros, fumando seu cigarro, com sua caneca de café nas mãos. Lembro que o sebo era muito limpo e organizado. Brinquei com ele algumas vezes que para o sebo dele criar cara de sebo, tinha que bagunçar todas estantes e deixar tudo úmido.
Me lembro também, com muita nitidez, que nas festas de natal da família ele me perguntava, na mais pura brincadeira, se eu não gostaria de mudar meu nome de Daniel para Amadeu, pois era supostamente um nome muito mais bonito. Ele também me ensinou que de um sanduíche de padaria se faz três, porque na padaria eles sempre põe mortadela suficiente para isso, portanto é só pedir dois pãezinhos a mais junto com o lanche.
Ríamos disso enquanto ele bebia suas latinhas de cerveja sem álcool.
Não éramos muito próximos, mas sempre soube tirar intensidade dos nossos escassos encontros. Amadeu era irmão da falecida esposa de meu tio-avô materno.Era tio dos meus primos de segundo grau. Na verdade, ele era parente dos meus parentes e não meu.
Amadeu não tinha o mesmo sangue que o meu correndo em suas veias. Não éramos parentes de sangue, mas hoje, quando me flagro em meio dos meus livros, segurando a minha caneca amarela fumegante cheia de café fresco e aspirando tudo que é possível ver de belo nesse mundo, vejo que antes de partir, meu tio Amadeu deixou um pouco de seu sangue dentro de mim.

Grito Número Cento e Trinta e Seis:

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ELA(S) E AS NOTAS

Eu tinha deixado minhas notas sobre a mesa e saído para tomar uns drinques no bar em que existia no térreo do prédio onde ficava o quarto que eu alugara nos dois últimos meses. Ela dormia profundamente e não cri que fosse um descuido.
Eram partes de muitos pensamentos, sentidos, sabores e experiências manchadas de vinho barato e café solúvel. Essas notas são pequenos orgasmos de nanquim perdidos num escroto chamado caderneta. Quando encontro um óvulo, que é a conclusão ou epifania de uma porra qualquer (literalmente-figurada, nesse caso), nasce o embrião de uma crônica minha.
Mas voltando, as notas estavam sobre a mesa e eu estava pedindo uma cerveja qualquer, desde que a garrafa fosse de vidro verde. Foi quando lembrei que as notas estavam escancaradas e esparramadas e que talvez ela acordasse do sono de vinho e lesse algum pedaço de papel que dissesse respeito a sua pessoa. Estavam ali as fodas selvagens e as brigas de garrafas-projétil (que normalmente terminavam em novas fodas selvagens). Ali estavam suas qualidades que eu nunca elogiava e seus defeitos que eu não dava importância. As notas contavam de velhos tempos meus, de prostitutas e conhaque, da época que fui expulso do clube de charutos, do tempo que acreditei que usar bigode me faria mais charmoso e menos solitário.
(...)
Que cerveja espetacular, é belga? Holandesa? Interessante... Falar das notas? Que notas?
Ah! Me perdi de novo! Estava falando sobre a ânsia que me veio de correr para o quarto para impedir que ela lesse as notas que saíriam no livro que eu ia publicar naquele tempo, não me lembro o nome agora, já faz uns bons anos. Acho que era "Alguma Coisa Não Existe em São Paulo" não me lembro se era "Solidão", "Vidro Limpo" ou "Fazer Feio", não importa. Eu sabia que depois de publicado ela não leria, pois sei que ela não gastaria o dinheiro do vinho e dos cigarros de menta em livros, ainda que meus, ainda MAIS dos meus, ainda que fossem dela mesmo, se soubesse escrever qualquer merda que prestasse. Uma vez, na animação de me ver datilografando, me escreveu um soneto horrível, senti vontade de vomitar quando li tamanho lixo. Era um pelo do cu do Pablo Neruda. Ela só era boa em dar colo para o meu pensar de bêbado, em me dar apoio para meu andar embriagado, em trepar sóbrio ou transbordando vinho pelos poros.
Então... as notas na mesa! Tomei dois goles grandes da cerveja e deixei uma nota de cinco para pagar a long neck, deixei o troco pra trás e naquela época, cada centavo fazia falta. No meio da escadaria, joguei a garrafa no chão, agora vazia, mas ainda (e eternamente) verde. Segui correndo até o sexto andar, fim do corredor, quarto 609.
Peguei minha chave, trêmulo e com uma dificuldade facilmente superada, abri a porta.
O quarto tinha um preço ótimo, por isso tantas semanas por lá, mas era um pouco fedido e mofado e a água da pia tinha gosto de ferro. As paredes tinham musgo e o armário da mini-cozinha usava arame no lugar das dobradiças das portas. Um muquifo de requinte.
Perdi o foco novamente, do que eu estava falando mesmo? Ah, dela e das notas!
Então, não me lembro direito quem era ela e não me lembro se ela leu ou não as notas, se eu publiquei as tais notas em um de meus livros e se nos meus livros já falei sobre isso.
Mas falando nisso me lembrei de uma coisa. Estamos aqui conversando, o papo está ótimo, mas eu deixei umas notas em cima da mesinha de café no quarto que aluguei essa semana, bem aqui em cima desse bar em que estamos bebendo agora nossas cervejas holandesas, e uma moça que conheci na noite passada, aqui no bar, está dormindo na minha cama agora e não quero que ela leia as notas que falam sobre ela e o que fizemos ontem. Vou subir até lá e dar uma checada se ela não acordou e guardar as notas na pasta, o lugar mais seguro para elas. Mais tarde eu volto para terminarmos essa cerveja e eu vou lhe contar uma história que aconteceu comigo, quando uma de minhas mulheres leu sobre ela.

Grito Número Cento e Trinta e Cinco:

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

PORQUE MEU CORAÇÃO É DESSES QUE ANDAM NA CHUVA...

Eu sempre fui dessas pessoas do acaso, que recebem o frio repentino de regata e bermuda e que recebem a chuva sem ter nem mesmo um chapéu para se abrigar dos pingos. Já perdi as contas de quantas vezes cheguei encharcado em minha casa, inundando todo o caminho até um lugar onde pudesse alcançar uma toalha e um par de peças secas.
Todos os dias a acompanhava com meus olhos, para notar o que ela trazia consigo além do seu simpático sorriso. Sempre em sua bolsa de tecido havia um guarda-chuva dependurado. Estivesse o tempo chuvoso ou ensolarado, ele estaria lá. Sempre me chamou muita atenção, pois se passavam semanas sem chuva e ela seguia munida da proteção pluvial.
Pode ser que eu esteja imaginando, mas tenho uma vaga lembrança de ter pego alguma carona debaixo daquele guarda-chuva em algum final de tarde que o céu resolveu desaguar.
E em paralelo a esse hábito de sempre estar protegido da chuva, quer ela venha, quer não, penso em meu coração.
Penso que meu coração, talvez por ser parte de mim, seja simplesmente como eu. Desse tipo que anda ao acaso sem guarda-chuvas, sem documentos, de chinelo pelas poças.
E é claro, que a chuva chega para ele também, e se molha, e se encharca, e se empapa de água e sai navegando pelas vielas procurando uma boca-de-lobo para se perder de mim de vez. Mas eu o amarrei firme num cordel para que isso jamais acontecesse. Deixo ele ir com a força das águas, mas sempre puxo de volta quando o cordel me avisa que é hora de se preocupar.
Talvez hoje, um dia de chuva pesada, fosse o dia de aprender com a mocinha que sempre se vale de seu guarda-chuva, e arranjar uma proteção definitiva para a chuva que lava minha alma e o meu coração de pessoa que anda ao acaso de chinelo pelas poças.
Mas eu nunca aprendo...

Grito Número Cento e Trinta e Quatro:

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

SONHOS DE QUASÍMODO

Funesto, bestificado
Carne crua, mal amado
Cigana nua, ele amordaçado
Estranho amor, estranho amor...

Triste, puro,
Deformado.
Bela e cruel,
Fazendo seu papel.
Quanta dor, quanta dor!

Pelas torres se esgueirando
As gárgulas se faziam irônicas
As carolas tão atônitas
A gritar, a gozar

Deixou o cancro tomar-lhe o corpo
Sua doença foi tomar a luz ofuscada pelos vitrais
O sineiro fez sua vez

Victor, o que você criou?
Com suas badaladas mortais,
Mais uma gárgula para as catedrais!
A sabatina começou!

Sabatina nas catedrais!
Serpentina nos carnavais!
E o pobre cheirando os restos mortais
Daquela que nunca o amou...

Sobrou martírio nas ossadas
A última tentativa do jamais-amado
Resquício das covas entrelaçadas
Dois esqueletos, um esguio e um deformado

O leito rochoso lhe deu a maldita paz!
Surdo, coxo, infeliz
É hora da última badalada

Grito Número Cento e Trinta e Três:

domingo, 2 de outubro de 2011


ZUMBI DO MIOCÁRDIO

Meu coração é um navio negreiro
Que parte da África central
Quantos homens fortes e inteiros!
Quanto trabalho veemente em potencial!

Mas é fato que o caminho é traiçoeiro e o mapa falha
E parte dos negros morre ou se mata ainda na nau
A doença se espalha, e com toda gentalha...
É um escravo somente que combate o mal

Entre adaga e chicote o escravo foge no trote
Matando o vil capitão do navio
E foge por mata adentro

Foi este guerreiro escuro que tornou em mim o coração duro
Sofrido peito imundo e vazio
Mas com semente de flores bonitas por dentro



Ilustração de Joey Hx Core, que pediu para participar de um grito mudo.