Grito Número Sessenta e Quatro:

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

GATO XADREZ


Foi montando peça por peça. Torres nos cantos seguidas pelos cavalos e bispos, tudo conforme descrito na parte de trás do tabuleiro. As peças negras alinhadíssimas, encarando as peças brancas, já meio amareladas pelo tempo. A menina, com olhos tão brilhantes, se sentia em plena idade média, no maior confronto entre reinos de essência oposta. Depois do tabuleiro organizado, com tanto esmero, percebeu. Que além de não saber jogar, não poderia jogar só. A frustação passou segundos depois de alguns passos, quando avistou o balanço de pneu a chamando na figueira. Foi tudo esquecido através de sabor de vento no rosto e o balanço constante sob sombra da árvore. Deixou o reino talhado em madeira sem culpa ou remorso. Sempre será fácil abandonar os peões que te encaram feio, para poder se balançar, desde que seu coração ainda seja de criança. Afinal, o balanço é muito mais legal quando se está só, e se alguém chegar, é só pedir para empurrar.

Grito Número Sessenta e Três:

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Um baobá cheio de corvos.

Seus bicos amarelos iluminam o ambiente lúgubre.

Seus grasnados ecoam uma melodia infernal.

Olhos arrancados de corpos estão perdidos meio aos galhos, qual enfeites natalinos.

Abandonados por abutres que deixaram de lado a carniça para tornarem-se urubus-rei.

Mas de rei esse urubu só tem o título.

As flores do dia de finados já estão secas e formam um colorido de tons pastéis tristes e amarelados.

Um crisântemo branco agüenta o sol de dezembro com afinco.

Esbanja vida adornando a morte dos outros.

Arco-íris de arame farpado.

Prato de alumínio levemente amassado e vazio.

Criança cheia de catarro e fome.

Um velho esquálido com camisa vermelha de propaganda de partido político de esquerda pega latas do lixo e engorda seu saco surrado de estopa.

Chuva de verão, molha tudo ao mesmo tempo em que o sol torra a todos.

“Casamento de espanhol” dizem das janelas as velhas que olham matreiras o movimento dos vizinhos e da travessa em que moram.

Escola vazia, rua imunda, vômito da véspera festiva.

Silêncio mortal da manhã.

O presidiário tirou férias da cadeia para bater em sua esposa e cheirar um pouco de pó, só volta dia dois do ano que vem para sua gaiola falha e degenerada.

Um senhor gordo fuma cachimbo em sua varanda observando as folhas secas.

Uma criança rica doa um carrinho sem rodas para uma criança pobre que recebe como se fosse uma barra de ouro.

O tal deus-menino fugiu do presépio e toma conhaque sozinho em outro planeta, se recusa a participar de festa surpresa onde não pode escolher seus convidados.

E nessa festa só dá gente chata.

Resto de rojão, garrafa vazia de sidra de maçã.

Amor entre os homens, falsidade entre as famílias, boa-vontade passageira.

Feliz natal de carne.

Feliz natal de osso.

Porque são só os ossos que sobram para maioria.

Grito Número Sessenta e Dois:

sábado, 11 de dezembro de 2010

Sobre uma das coisas estranhas que eu fazia com treze anos...

Sempre tive uma paixão misteriosa por cemitérios. Há quem diga que eu os frequentava em minha pré-adolescência para chocar, para chamar a atenção e me fazer notar, mas por tantas vezes fui lá sozinho e não falei para ninguém...
Eu sempre descia a ladeira da avenida principal daquela cidade de interior com meu skate e no final dela encontrava a imagem de São João Menino.
Nessas vezes, dava uma volta geral, lia as lápides, olhava nos olhos das fotos e calculava a idade com que tinham morrido.
Várias crianças mortas.
Lia as frases dos epitáfios e pensava no que eu gostaria que fosse escrito no meu.
Nunca cheguei a nenhuma conclusão.
No final da caminhada, entrava em um jazigo cor de areia e o fazia de varanda.
Acendia um cigarro e ficava olhando o nada por horas, até a tarde morrer atrás dos morros.
Depois eu seguia avenida acima, me sentindo vivo.
Mas quando chegava em casa, já estava escuro, eu tomava um banho, deitava em minha cama com a televisão ligada e me sentia como se minhas coroas de flores já estivessem murchas a anos e a única coisa que mantinha minha memória era uma placa de bronze esverdeada sem nada escrito nela.

Grito Número Sessenta e Um:

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sem tempo para pensar em títulos.

Acorda, pega a primeira camisa que encontra no armário e engole um pão no caminho.

Não dá tempo de escovar os dentes, de dar bom dia, de pensar.

Encara oito pilhas de papel, de 40 centímetros cada.

Pareciam totens de tribos canibais.

Sem agilidade seria devorado pelo expediente.

Lê, cataloga, arquiva.

Lê, cataloga e arquiva.

Começa a cantarolar uma canção da década dos homens de chapéu coco.

Percebe que catalogou tudo errado.

Começa tudo de novo desde o começo da canção.

Pensa em entrar para um coral, mas não daria tempo.

Pensa em fazer um esporte, mas não daria tempo.

Pensa em ter mais tempo, mas arquiva tudo errado de novo.

Pausa para o café, bebe dois copos descartáveis.

Coloca o copo na lixeira que diz orgânico, pois já está tudo misturado mesmo.

Serviços bancários, fila, metrô, acende um cigarro no caminho de volta.

-É um assalto.

Perde os documentos.

Não quer mais ter RG.

Não quer mais saber de CPF.

Cansou do padrão, mas nunca soube ser ovelha desgarrada.

Cansou de frases soltas.

Tirou a gravata, deitou em sua cama.

Acendeu um cigarro, serviu um conhaque.

Rezou para Nossa Senhora Aparecida.

Dormiu.

Acordou.

Voltou a dormir.

Abriu os olhos mais uma vez e apanhou a carteira de cigarros da cômoda.

Acendeu outro cigarro e fez um café.

No primeiro gole do café, se encontrou.

E estava lendo, catalogando e arquivando.

Mas estava tudo errado e tinha que começar aquilo tudo de novo.

Grito Número Sessenta:

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010



E entre os goles de café pensei em tudo que havia dito.
Acontece que eu estava mudo há anos...