DA SOLIDÃO E SEU RITUAL DE EVASÃO
Quando o sono vem, coço as pálpebras e encosto com suavidade minha cabeça no travesseiro, mas não cerro os olhos. Deixo-os tornarem-se pesados sozinhos e os sinto fechar lentamente, sem que eu manifeste minha vontade. Enquanto as areias do João Pestana não chegam às têmporas, vão voando as ideias na minha mente sempre inquieta. Penso em barcos de papel e desses chego até "O Velho e o Mar", tento entender os leões dos sonhos do protagonista narrados na última página. Penso em ter força, como os leões. Não gosto de carneiros, então nunca faço esse tipo de contagem, apesar da sua dignidade, não serve para dar sono a ninguém.
Na ocasião, era quase três da matina e nada. Peito pesado. Ninguém ao lado no colchão sem lençol até que ela chegou nua e desvirtuosa, caminhando com seus passos mancos e sorriso afetado: a solidão voltou para me fazer companhia. Qualquer idiota sabe que tristeza e insônia não combinam.
Levanto e penso em beber um pouco de café velho da térmica.
Queria mandar essa moça pálida e noturna para longe. E eu conheço muito bem o ritual para fazê-lo: é buscar um canto, colocar conhaque garganta adentro para amansar o peito, que funciona como soda cáustica e um ralo imundo, cheio de cabelo, bagana de cigarro e limo. Um maço de cigarro devorado enquanto olho pela janela e vejo as árvores e escrevo versos brancos na minha cabeça e penso em metáforas escrotas para usar nos meus textos. E depois, tudo passa, tudo volta ao normal, ou pelo menos finjo acreditar que o normal seja a calmaria contínua e não o lapso de tempestade.
E agora, que me deram quarto sem janela, e é proibido fumar, e nesse quarto existe lei seca e toque de recolher?
Sem o ritual a solidão fica, me joga na cama, faz amor comigo a noite toda, deixa suor no travesseiro encardido. Só vai-se embora quando nasce o sol, mas a filha da puta me abandonou grávido de um feto sem rosto.