Grito Número Cento e Noventa e Sete:

domingo, 24 de fevereiro de 2013

LUGAR CERTO


A gente tenta disfarçar a cara amarrada
Toma providência pra encontrar distração
A gente tenta acomodar o coração
Mas caixa é caixa, almofada é almofada...

Grito Número Cento e Noventa e Seis:

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

ALTEZA INERTE

Apocalipse 3:15, 16 - "Conheço as tuas obras, 
que nem és frio nem quente; oxalá foras frio ou quente! 
Assim, porque és morno, e não és quente nem frio, 
vomitar-te-ei da minha boca."


E a princesa foi lá e fez...
Ela vivia enclausurada entre as masmorras e permanecia em uma alcova-cela não muito grande. Fora presa uns anos antes por um bando de saqueadores, caçadores de recompensa e gente da pior espécie, pessoas que agiam tal e qual Gengis Khan e sua corja. Seu antigo castelo fora dominado por estes homens que mais lembravam trasgos, ogros e criaturas do gênero, sujos e grosseiros.
O grilhão que assegurava que seus pés permaneceriam quietos eram prateados como os seus cabelos e seu quarto era triste e úmido. Havia apenas uma pequetita janela pela qual entrava um feixe de luz matinal que banhava seu semblante pela manhã. 
Pensava nos pássaros e na razão dos homens engaiolarem os mesmos, também pensava constantemente nos passados tempos quando era tão somente uma princesa ansiosa por sustentar uma coroa dourada em seu cocuruto. Pensava no seu pai decapitado e de trono usurpado pelo bando, em sua pobre mãe e rainha, violentada e morta como um cordeiro para oferenda. Fugindo dessas lembranças nefastas e sombrias, passou a sonhar acordada com dias melhores. Tão óbvio quanto em qualquer conto de fadas, sonhava com um príncipe galante que a tiraria daquele lugar e que lutaria com seu sabre afiadíssimo por todos que tentassem impedí-lo.Sonhou tanto que já havia decorado as falas de seu sonho repetido. Sonhou tanto que seu príncipe inerte já não era mais quente, mas não chegava a ser frio: era morno. Um tepidez torpe e enjoada, uma tepidez de causar vômito. 
Quando se viu enjoada de seu sonho pueril e libertador, a princesinha em um ataque de fúria mortal mordeu a corrente que ligava o grilhão de prata à grande pelota de ferro negra e seguiu mordendo até não restar dentes da frente.
Cheia de dor e sangue escorrendo pelos seus lábios delicados, percebeu que seu esforço tivera resultado, seus dentes maceraram um dos elos da corrente. Ainda que o elo macerara seus dentes de volta, estava solta.
Correndo alucinadamente, topou com um guarda e roubou-lhe o sabre em uma manobra ousada. A cabeça rolou pelo assoalho de madeira rústica. E rolaram todas as cabeças possíveis pela lâmina de Vossa Alteza. Ela havia restaurado seu reinado e conseguiu um belo conjunto de dentes de pérola para substituir os que foram perdidos no esforço. Não conseguiu parar de sorrir nunca.
Enquanto esperava sonhadora e sorridente pelo príncipe em inércia, tudo era uma espera, mas quando se propôs a perder os dentes, retomou todo o controle.
Depois de ser feita rainha em cerimônia e ovacionada por sua bravura indomável por seus novos súditos,  devorou carnes flamejantemente quentes e tornou alguns cálices de vinho mais gelados que os topos dos alpes. Pelo morno não valia mais a pena esperar. Tudo que era morno, para Vossa Majestade, era agora intolerável.