Grito Número Cento e Sessenta e Dois:

quarta-feira, 28 de março de 2012

SOBRE OS SORRISOS PONTUAIS E OS BEIJOS COM BOCA DE HORTELÃ


Cotidiano vai muito além do que rotina. Enquanto esta é apenas um cronograma simplório do que deve ser feito reiteradas e reiteradas vezes, o cotidiano integra as emoções e as vontades destas ações cronogramadas e das pequenas manias pessoais que existem entre dois momentos anotados na agenda da rotina.
Cotidiano é mais do que ir do botão do despertador até a caneca amarela de café, do café até a banca de jornal, da notícia desimportante de meia página ao assento do metrô e do trabalho para o colo de quem se ama no final do dia.
Meu cotidiano envolve analisar a forma que seus olhos tomam enquanto você lê das coisas que não me interessam, e a forma que tomam quando me descobrem flagrando a menina dos seus olhos contraindo com a luz da sala. Está em pensar no livro que quero escrever e nas minhas cartas que foram para o exterior.
Não está na minha rotina a dor que sinto nas minhas costas e que faz apertar o peito, como se eu tivesse perdido um grande amor.
Rotina é fazer riscos no calendário, cotidiano é lembrar que hoje pode ser um dia especial. A rotina é austera, não gosta de mudanças repentinas, sempre é rígida e regida. O cotidiano gosta de novos cheiros e de ser flexuoso, é uma rotina paralela que não pode ser planejada.
Está na minha rotina sentar no Largo Ana Rosa depois que almoço (almoçar também está no cronograma), mas o que eu penso e o que me faz suspirar não pode entrar no quadro das praticas constantes, ainda que constante sejam. Também não pode entrar na rotina o meu olhar para os pombos papudos que se cortejam por lá; a rotina não gosta de olhar para as pequenas coisas da vida.
Meu cotidiano engloba também a forma a qual todos os dias observo o jeito de seu cabelo escorrer pelo rosto. Está na maneira em que mordo meus lábios, contendo o riso, depois das saudações e abraços de "bom dia", na tentativa de sentir gosto do seu cheiro.
A rotina destaca o destino final e o horário em que se deve comparecer,  mas sempre existem diversos caminhos para chegar.
Estes caminhos são o cotidiano, e também todas as paisagens que se pode observar, e todas as esmolas que se dá, e pássaros que se olham, e helicópteros que passam, e cafés de balcão que se tomam, e estranhos para quem sorrimos também.  
E nenhum desses pequenos costumes que integro no meu cotidiano estão embutidos na minha rotina. O cotidiano é sempre o segredo de quem ama (ou de quem pensa demais); o cotidiano é a alma da rotina. E, por aí, andam cotidianos desalmados...

1 comentários:

Monique Burigo Marin disse...

Isso é o que eu precisava ler. Depois de tempos me questionando sobre a falta de exatidão dos sinônimos. Aqui está a prova de que sinônimos podem, sim, ser antônimos. A palavra está subordinada ao contexto, e ele, somos nós que fazemos.