Grito Número Cento e Trinta e Seis:

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ELA(S) E AS NOTAS

Eu tinha deixado minhas notas sobre a mesa e saído para tomar uns drinques no bar em que existia no térreo do prédio onde ficava o quarto que eu alugara nos dois últimos meses. Ela dormia profundamente e não cri que fosse um descuido.
Eram partes de muitos pensamentos, sentidos, sabores e experiências manchadas de vinho barato e café solúvel. Essas notas são pequenos orgasmos de nanquim perdidos num escroto chamado caderneta. Quando encontro um óvulo, que é a conclusão ou epifania de uma porra qualquer (literalmente-figurada, nesse caso), nasce o embrião de uma crônica minha.
Mas voltando, as notas estavam sobre a mesa e eu estava pedindo uma cerveja qualquer, desde que a garrafa fosse de vidro verde. Foi quando lembrei que as notas estavam escancaradas e esparramadas e que talvez ela acordasse do sono de vinho e lesse algum pedaço de papel que dissesse respeito a sua pessoa. Estavam ali as fodas selvagens e as brigas de garrafas-projétil (que normalmente terminavam em novas fodas selvagens). Ali estavam suas qualidades que eu nunca elogiava e seus defeitos que eu não dava importância. As notas contavam de velhos tempos meus, de prostitutas e conhaque, da época que fui expulso do clube de charutos, do tempo que acreditei que usar bigode me faria mais charmoso e menos solitário.
(...)
Que cerveja espetacular, é belga? Holandesa? Interessante... Falar das notas? Que notas?
Ah! Me perdi de novo! Estava falando sobre a ânsia que me veio de correr para o quarto para impedir que ela lesse as notas que saíriam no livro que eu ia publicar naquele tempo, não me lembro o nome agora, já faz uns bons anos. Acho que era "Alguma Coisa Não Existe em São Paulo" não me lembro se era "Solidão", "Vidro Limpo" ou "Fazer Feio", não importa. Eu sabia que depois de publicado ela não leria, pois sei que ela não gastaria o dinheiro do vinho e dos cigarros de menta em livros, ainda que meus, ainda MAIS dos meus, ainda que fossem dela mesmo, se soubesse escrever qualquer merda que prestasse. Uma vez, na animação de me ver datilografando, me escreveu um soneto horrível, senti vontade de vomitar quando li tamanho lixo. Era um pelo do cu do Pablo Neruda. Ela só era boa em dar colo para o meu pensar de bêbado, em me dar apoio para meu andar embriagado, em trepar sóbrio ou transbordando vinho pelos poros.
Então... as notas na mesa! Tomei dois goles grandes da cerveja e deixei uma nota de cinco para pagar a long neck, deixei o troco pra trás e naquela época, cada centavo fazia falta. No meio da escadaria, joguei a garrafa no chão, agora vazia, mas ainda (e eternamente) verde. Segui correndo até o sexto andar, fim do corredor, quarto 609.
Peguei minha chave, trêmulo e com uma dificuldade facilmente superada, abri a porta.
O quarto tinha um preço ótimo, por isso tantas semanas por lá, mas era um pouco fedido e mofado e a água da pia tinha gosto de ferro. As paredes tinham musgo e o armário da mini-cozinha usava arame no lugar das dobradiças das portas. Um muquifo de requinte.
Perdi o foco novamente, do que eu estava falando mesmo? Ah, dela e das notas!
Então, não me lembro direito quem era ela e não me lembro se ela leu ou não as notas, se eu publiquei as tais notas em um de meus livros e se nos meus livros já falei sobre isso.
Mas falando nisso me lembrei de uma coisa. Estamos aqui conversando, o papo está ótimo, mas eu deixei umas notas em cima da mesinha de café no quarto que aluguei essa semana, bem aqui em cima desse bar em que estamos bebendo agora nossas cervejas holandesas, e uma moça que conheci na noite passada, aqui no bar, está dormindo na minha cama agora e não quero que ela leia as notas que falam sobre ela e o que fizemos ontem. Vou subir até lá e dar uma checada se ela não acordou e guardar as notas na pasta, o lugar mais seguro para elas. Mais tarde eu volto para terminarmos essa cerveja e eu vou lhe contar uma história que aconteceu comigo, quando uma de minhas mulheres leu sobre ela.

3 comentários:

Monique Burigo Marin disse...

Eu que não gosto de cerveja, acabo de pedir outra. E outra. E outra. Em garrafa verde e retornável que é para os vidros não tomarem conta do lugar.
Espero que ela não pise nos cacos ao sair correndo, mas só tenho medo que o bar feche antes do fim da história.
Adorei!

mfc disse...

Os desenganos de uma vida real!
Esta solidão acompanhada que nos invade é tremenda!

Patrícia Müller disse...

Conte essa história qualquer dia haha...

Não gosto que leiam meus pensamentos do caderno de capa rosa, não o guardo, nem escondo, deixo aqui jogado, assim ngm tem interesse.