Grito Número Quarenta e Um:

sábado, 11 de setembro de 2010


E talvez não fosse nada...


- O que vem causando suas convulsões é um tumor no hemisfério esquerdo do cérebro. Olhe esta tomografia. Há metástase óssea na região da espinha cervical e suspeita de metástase nos rins e no fígado – o médico disse com o ar mais pesaroso do que se fosse um agente funerário – O tumor está pressionando o cérebro contra o crânio e isto explica as alucinações, mas receio não termos mais tempo.
- O que quer dizer com isso? – respondi ainda embriagado pelas explicações quase acadêmicas.
- Quer dizer que receio estimar-lhe mais um mês ou dois de vida. Vou lhe receitar remédios para a dor, alguns anti-convulsivos e algo para as alucinações.
- Eu não quero.
- Não é uma questão de querer. E sim de precisar.
- Então o senhor pegue o seu diploma e enfie no meio do seu cu com PhD. Me resta pouco e você pretende tirar-me a única coisa que sinto. Deixe minha dor em paz. Quanto às alucinações, algumas delas têm me trazido paz. Eu vi o meu pai semana passada.
- Você havia me dito que não se falavam há anos, é bom você resolver seus assuntos.
- Meu pai está morto há oito anos. Ele veio nas minhas paranóias me dizer que sou um merda.
O médico somente olhou para baixo e acho que sentiu vontade de rir, mas controlou-se.
Fui embora sem chance de tentativas de convencer-me que o melhor era ficar catatônico com pílulas que poderiam me transformar em zumbi antes mesmo de eu morrer.
Estava em casa, sentado na poltrona, resolvi descontar a raiva nos copos e pratos, joguei todos na parede, não sobrou nenhum além do velho cálice de servir conhaque de meu avô, respeitei a memória do homem que tentou me ensinar (apesar de ter falhado) a ter autocontrole. Depois fiz jus a ter guardado o cálice, me embriaguei com metade de uma garrafa de conhaque que havia sobrado no armário de bebidas desde que meu avô havia deixado esse mundo, dois ou três anos atrás.
Quando acordei só conseguia pensar no que havia se passado; eram cerca de seis e quarenta da manhã, acordei no meio dos cacos da louça e de uma poça de vômito e bile, da mais fétida possível. Tentava me convencer que a paranóia me criou a imagem de um médico que me dizia que eu tinha câncer até no cu. Mas não era mentira, eu só não queria acreditar.
Olhei para a estante e vi a coleção de livros do Pablo Neruda que nem sequer tirei o plástico que os encapava. Eu era apaixonado por Pablo Neruda, mas nunca sequer havia lido um verso dele. Depois olhei para o quadro de futebol do meu pai, que ficava ao lado do mini-bar. Senti vontade de quebrá-lo, foram diversos jogos que ele havia me levado a força, pois nunca gostei de esportes, nem de aglomerações.
As últimas gotas de conhaque da garrafa negra me tiraram da ressaca moral em que eu estava, por mais que eu bebesse o efeito era adverso do que o das pílulas-zumbi, se assim posso chamá-las. A bebida da noite passada só me fez adormecer profundamente, não me proibiu de viajar em meus pensamentos insanos.
Normalmente, as visões e vozes vêm quando os outros dizem que eu estava convulsionando. Talvez seja algum universo paralelo ou alguma coisa que eu não possa compreender. Talvez seja Deus me poupando de sofrimento, mas não, não acredito que ele se preocupe com esse tipo de merda. Ele me deu uma coleção de tumores, dores e alucinações, mas não me deu medo.
Desde a notícia de que a merda havia sido jogada no ventilador e que o cancro havia dominado tudo que era víscera dentro de mim, eu não sentia mais medo. Eu sabia que ia morrer, mas também não estava aliviado.
Passei a manhã toda sentado em minha poltrona aveludada vermelha só olhando para a parede com as marcas da festa de pratos que fiz nela ontem. Pensei na minha vida, nos meus quase trinta anos. No curso de gastronomia, nos livros de Pablo Neruda, nas mulheres que me deixaram. Pensei em tudo que não fiz. Havia oscilado a luz e o despertador marcava uma hora estranha, ele despertou o que julgava ser meio dia, mas eram... bem, não quis mais saber das horas, o tempo não importava mais.
Ajeitei a calça e saí sem camisa na rua. Nevava, mas não senti frio.
Dona Edwiges, a vizinha abelhuda e infernal disse bom dia. Dei a ela o que mais precisava desde o início de sua viuvez. O meu dedo médio bem alto. Acho que ela entendeu o recado, pois apenas abaixou a cabeça seriamente.
Passei anos da minha vida de terno, esperando aviões atrasados, passei anos lendo livros de economia ao invés dos que poderiam me despertar algum interesse; trabalhei por oito anos ininterruptos em uma financeira que era especialista em deixar velhinhos sem dinheiro para seus remédios, um trabalho idiota e vil, de macaco treinado, não sei no que me serviu o mestrado e o diploma em Ciências Econômicas além de pagar as contas de luz que nunca acendia e da TV a cabo com 300 canais, que obviamente, nunca assistia.
Aonde eu cheguei com minha vida miserável? Criei a rotina de algo que nunca fui eu. Ignorei o tempo que tinha e agora o tempo vai me devorar em menos de 60 dias, de acordo com meus médicos.
Fui andando pela neve sem camisa e sem frio até o Hospital Geral da Cidade, lugar onde meu pai morreu de câncer e me deixou de herança uma caixa de charutos cubanos, remorso, raiva e tumores pelo corpo.
Entrei e fui ao quarto 303, terceiro andar, onde foi a última vez que o vi, estava magro e feliz em me ver, obviamente não era ele naquela cama. Foi ele mesmo que mandou me chamar, para se despedir ou algo assim, obviamente era o que chamam de “memento mori” ou morfina demais em suas veias, nunca irei saber.
Uma enfermeira me viu de calça e sem camisa e tentou me abordar, mas antes que ela pudesse me dizer algo eu disse “bateria de exames” apontando para meu peito. Ela acreditou e me deixou em paz.
Após subir mais dois lances de escada até o quarto andar, passei em frente ao quarto 405, onde meu avô partiu, havia uma senhora de cabelos roxos no quarto, ela me sorriu com pesar, como se pudesse me ver por dentro, mas acho que o pesar era para ela mesma. Lembrei me de quando meu avô me ensinara a fazer pipas, a tocar uma velha gaita que tinha e me ensinou a gostar de Beethoven. Eu nunca gostei de música clássica, mas gostava de Beethoven, bem como nunca gostei que fumassem perto de mim, mas sempre fui apaixonado pelo cheiro do cachimbo de meu avô. Tudo em meu avô sempre me fez bem, sua imagem sempre me trouxe a melhor sensação de aconchego.
Sentei-me próximo a escadaria de incêndio e matutei sobre a minha covardia de nunca viver o que sempre sonhei, em viver apenas um reflexo patriarcal de um pai que desprezei por anos. Vi então a imagem de meu pai, desta vez a imagem clássica, um gordo maldito embutido em um terno italiano de setecentos dólares. A imagem dele estava nítida como nunca esteve em minhas paranóias cancerosas, eu o vi hesitar em entrar a porta em que eu estava logo a frente, como sempre, não me notou estar ali. Uma enfermeira falou com ele e a ouvi dizer algo sobre seu filho que não consegui entender. Pensei que a imagem estava se tornando realista demais, primeiramente achei que poderia se tratar de fantasmas realmente, mas quando me aproximei da imagem ele adentrou o quarto de supetão. Foi quando nada mais fez sentido. Não sabia mais no que acreditar, pois quando abri a porta para encontrar o mínimo de certezas para minha mente ensandecida e tomada de tumores, me deparei com um homem em coma e seu pai apenas o fitando com descaso. O homem era eu.
Neste instante gelou-me os pés e as orelhas, era uma aflição melancólica, havia a certeza mais pura em meu peito, eu estava morto. Era a porra de um espírito vagante que sempre disse que não existiam. Mas me enganei, eu estava vivo, só não sabia ao certo se eu era o homem do coma sonhando que andava pela neve sem camisa e sem frio ou se era um homem pela neve que resolveu psicosomatizar um hospital no meio do gelo.
Sei que a duvida de não saber em que crer me fez vomitar e atordoar por minutos, quando sem demasia, me desmontei ao chão na beira da cama naquele quarto branco de hospital.
Quando acordei havia uma enfermeira ao meu lado, estava realmente num hospital. Perguntei o que havia acontecido, pois havia misturado paranóia e realidade.
Ela me explicou com um sotaque estranho (acho que ela era uma alemã ou austríaca erradicada por aqui):
-Você escorregou no seu banheiro e bateu a cabeça duas vezes, na saboneteira e no chão. Você esteve em coma por dois dias, creio que maior parte do que você vem achado estranho devem ser sonhos.
Neste momento tive a maior epifania de todos os tempos, eu não era tudo o que narrei nesta história que tentara me deixar menos patético do que eu sou. Eu era sim, um economista frustrado, mas com todos os versos de Pablo Neruda lidos, pois sempre foram a simplicidade de suas palavras que me mantiveram vivo no ninho de escorpiões em que decidi viver. Neruda me deixou com um mínimo de gosto de estar vivo, tão vivo como meu pai, que matei nos meus sonhos, para justificar sua ausência. Para justificar nosso orgulho sempre iremos sonhar que somos grande coisa, como a porra de um órfão. Talvez fosse melhor ser um órfão do que se desapontar todos os dias com alguém. Não via ou falava com meu pai há oito anos, mas só de pensar naquele velho gordo e imundo eu já me desapontava. Pelo fato de ter sido o maior amor do mundo, tudo que estive constando de meu avô era real, tão puro que minha mente não precisara me ludibriar com histórias hipócritas da Mamãe Ganso para acalmar os pensamentos de um frustrado de merda em estado de coma. E toda essa percepção de realidade veio como um tiro de bazuca, em um segundo tudo fazia sentido e conseguia distinguir as memórias das mentiras. Foi quando voltei-me para a enfermeira, que mal entendeu meu semblante epifanista e disse:
- Me lembro da queda. Me lembro de tudo.
Ela respondeu com o mesmo sorriso pesaroso de meus personagens que criei no meu pequeno coma:
- Vou avisar o médico que você acordou e está lúcido. Com sua licença.
Estava feliz por estar acordado, por não estar doente, mas por outro lado, enquanto o médico não chegava ao quarto fui abatido por uma melancolia, pois sabia que eu voltaria a ser o mesmo pedaço de merda de cavalo que sempre fui, que jamais teria coragem de agir com a bravura e rapidez instintiva como se estivesse com câncer. No meu sonho de coma, eu encarei a doença como meu momento de resolver e refletir o que deixei para trás e o que deixei de fazer, pensei que sobraria tempo para matar todos os demônios, mas não deu, pois acordei aquele velho covarde de sempre. Quando sonhei nunca neguei minha doença fictícia, nunca disse nada do tipo “talvez não seja nada, talvez não seja nada, pelo amor de Deus, por tudo que não seja nada”, eu só havia ficado atônito em poder transformar tumores em ampulhetas para eu poder morrer com um mínimo de dignidade, eu mesclei realidade com ficção e nem sei dizer que tipo de dignidade eu poderia ter quando acordei de um coma de dois dias com a testa enfaixada. Acho que talvez eu quisesse que a morte me perseguisse, para eu poder trabalhar com ela sob pressão.
O médico de olhos esverdeados adentrou no quarto e interrompeu meus pensamentos, ele me tratou como um paciente de quatro anos ao me examinar, mas disse pouco, quase nada.
Depois de me auscultar, checar reflexos entre outros procedimentos que um economista não faz questão de entender, sentou-se ao meu lado.
Disse com a voz mais branca que já ouvi:
- Você teve uma queda e ficou em coma por dois dias, foi uma concussão, talvez não seja nada mais.
-Eu tive é a chance de morrer de câncer como a porra de um herói pessoal, que só eu poderia admirar, mas sou a porra de um vadio escorregadio – pensei, mas não disse.
-Mas temos mais que sua concussão para se preocupar.
-O que quer dizer com isso, doutor? – respondi sem entender.
-Nós fizemos uma série de tomografias enquanto você dormia, nós descobrimos que você tem um tumor grave em sua cabeça...........

1 comentários:

Bruna Barievillo disse...

Adorei o estilo do conto. A narrativa não-linear dá o tom desconcertante de se receber uma notícia de morte próxima. realmente muito bom!!!